Por que a privatização só piora a crise nos presídios brasileiros
Por Igor Ojeda
O massacre de 56 presos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, no Amazonas, chocou parte dos brasileiros, preocupados com as condições das prisões e com a possibilidade de novos episódios semelhantes em outros locais, como de fato ocorreu. Outra parte da população, amparada no senso comum “bandido bom é bandido morto”, comemorou.
A chacina, ocorrida entre 1º e 2 de janeiro e que teve como motivo principal a disputa entre facções criminosas, foi a segunda maior da história do sistema penitenciário no Brasil, ficando atrás apenas do Massacre do Carandiru, em 1992, em São Paulo, quando 111 presos foram mortos.
O caso de Manaus logo chamou a atenção por causa de uma particularidade: desde 2014, o Compaj é gerido pela empresa privada Umanizzare. Mídia e autoridades se apressaram a responsabilizá-la pelo ocorrido: a gestora não teria cumprido adequadamente o serviço contratado.
Mas será que o problema da terceirização ou outras modalidades de privatização se resume a um serviço malfeito?
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Para estudiosos do sistema penitenciário ouvidos pela reportagem, o ponto central da questão não é a atuação de uma empresa ou as más condições de uma unidade terceirizada em si, mas as consequências negativas representadas pelo modelo de privatização dos presídios.
“Ao privatizar a unidade, o Estado repassa a gestão da prisão para uma empresa, e se faz presente na rotina do local de maneira indireta”, alerta Catarina Pedroso, psicóloga e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao Ministério da Justiça, mas de funcionamento autônomo.
Em dezembro de 2015, ou seja, um ano antes da chacina, ela e outras peritas visitaram o Compaj e outros três presídios de Manaus. “O cenário observado era de ‘autogoverno’ da rotina prisional pelos próprios presos, o que coloca em risco, naturalmente, a vida daqueles que não têm convívio com a massa carcerária ou daqueles que se desentendem com figuras de maior poder interno”, explica.
Para Bruno Shimizu, defensor público do Estado de São Paulo e doutor em Criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), “é possível afirmar com certeza que o processo de privatização e mercantilização da gestão prisional, seja por meio de terceirizações, cogestão ou Parceria Público-Privadas, desempenha papel central no massacre ocorrido”, defende.
Segundo ele, a gestão privada de unidades prisionais tem como consequências “inevitáveis” a piora das condições de aprisionamento e o crescimento da população carcerária em médio prazo, uma vez que os repasses de verbas públicas para as empresas são calculados com base no número de detentos da unidade gerida, e a um custo maior por preso do que nos presídios administrados pelo Estado. “Nesse contexto, verifica-se que há menos preocupação, em unidades privadas, com providências básicas para a garantia de segurança, como a separação de presos de comandos rivais e o monitoramento das condições de aprisionamento por órgãos da execução.”
Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, organização vinculada à Igreja Católica, enfatiza que a privatização ou a terceirização dos presídios, além de dificultarem a fiscalização externa do ambiente prisional, têm como resultados a precarização do trabalho dos agentes penitenciários, que são substituídos por funcionários com menor remuneração e menos treinamento, e o “surgimento de relações espúrias entre os gestores privados e as facções”.
De acordo com ele, no entanto, embora seja possível dizer que a terceirização do Compaj tenha contribuído com a ocorrência do massacre, o mesmo poderia ter acontecido em uma unidade administrada pelo Estado. O que teria ficado evidente com a matança, portanto, é que a privatização do sistema prisional não traz benefícios para a sociedade, não melhora as condições de tratamento dos detentos e não diminui os custos. “Além disso, agrega ainda mais dificuldades e problemas a um sistema que já é problemático por sua própria natureza cruel e desumana, e isso afeta negativamente presos e trabalhadores”, resume.
Em 2014, a Pastoral Carcerária publicou um relatório baseado em visitas a oito prisões privatizadas em seis diferentes estados e administradas por cinco diferentes empresas. Entre as conclusões, destacam-se:
- A relação custo/benefício da privatização não tem sido vantajosa para a administração pública;
- a alocação de recursos para as unidades privatizadas diminui os repasses para as unidades públicas.
- a privatização das prisões resulta da ausência de políticas penais alternativas e menos punitivas para pessoas em conflito com a lei;
- há alta rotatividade no quadro de pessoal das unidades privatizadas, com baixos salários e mínima ou nenhuma qualificação para o serviço de custódia de presos;
- a privatização das prisões está marcada pela falta de transparência;
- a rigidez disciplinar observada em todas as unidades privatizadas tem gerado restrições aos direitos dos presos previstos na Lei de Execução Penal.
Monopólio da força pelo Estado
Logo de cara, a privatização do sistema penitenciário enfrenta uma questão conceitual fundamental. Catarina Pedroso, do MNPCT, lembra que um dos princípios elementares do Estado Democrático de Direito é o monopólio do uso da força pelo Estado. “Na medida em que, nas unidades privatizadas, os agentes exercem o poder de disciplina e controle, esse poder estaria sendo transferido a terceiros”, critica.
Em dezembro de 2014, cerca de 18 mil detentos, ou 3% da população carcerária do Brasil, estavam sob gestão de empresas privadas, de acordo com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgados em abril de 2016.
A Lei de Execução Penal, em seu artigo 83-A, limita a atuação da iniciativa privada em presídios a “serviços de conservação, limpeza, informática, copeiragem, portaria, recepção, reprografia, telecomunicações, lavanderia e manutenção de prédios, instalações e equipamentos internos e externos” e “serviços relacionados à execução de trabalho pelo preso”. O artigo 83-B, por sua vez, determina: “São indelegáveis as funções de direção, chefia e coordenação no âmbito do sistema penal, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia”.
Bruno Shimizu alerta que de acordo com a lei, portanto, “atividades típicas de agentes de segurança prisional, de direção, de escolta e movimentação de presos e de apuração disciplinar não podem ser delegadas à iniciativa privada. Infelizmente, contudo, o conluio entre agentes públicos e privados na busca irresponsável por lucro faz com que a lei seja desrespeitada em diversos Estados”. No Amazonas, por exemplo, embora a Umanizzare tenha afirmado em nota à imprensa não exercer o poder de polícia no interior do Compaj, tal atribuição está prevista no contrato assinado com o governo estadual e pôde ser observada durante visitas de defensores de direitos humanos ao local.
Em um julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de novembro de 2002, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, determinou: “a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir (...)”.
Em dezembro de 2002, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), subordinado ao Ministério da Justiça (MJ), emitiu uma resolução em que recomenda “a rejeição de quaisquer propostas tendentes à privatização do Sistema Penitenciário Brasileiro”. Já em dezembro de 2015, o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, também vinculado ao MJ, divulgou uma recomendação no mesmo sentido, para que os governos federal e estaduais não privatizem os serviços relacionados à custódia de pessoas pressas e para que o Senado e a Câmara dos Deputados “rejeitem qualquer proposta legislativa tendente a permitir ou regulamentar a terceirização da execução da pena ou a privatização do sistema carcerário brasileiro”.
Aumento do encarceramento
De acordo com os últimos dados disponíveis, em dezembro de 2014 a população penitenciária brasileira era de 622.202 pessoas, segundo o Infopen. Destas, 61,6% eram negras, 75,08% tinham até o ensino fundamental completo e 55% tinham entre 18 e 29 anos. Em números proporcionais, o país era o sexto do mundo em taxa de encarceramento, com 306,2 detentos por 100 mil habitantes. Desde 2000, o número de presos cresceu 167% – em 2004, eram 135 presos por 100 mil habitantes.
Os especialistas ouvidos pela reportagem argumentam que a privatização dos presídios tende a resultar no aumento ainda maior da população carcerária, pelo fato de as empresas gestoras receberem por “cabeça”. “A partir do momento em que temos cada vez mais grupos econômicos se beneficiando do encarceramento, é natural que esses sujeitos, que se estruturam em torno da maximização dos seus lucros, façam cada vez mais lobby junto a parlamentares, gestores públicos e veículos de imprensa em defesa de medidas encarceradoras e de recrudescimento penal. Para esses grupos, quanto mais presos, maior é o lucro”, explica Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária.
Reportagem de Paula Sacchetta na Agência Pública, de maio de 2014, revelou que segundo o contrato da primeira penitenciária privada do país, em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte, o Estado garante 90% de lotação mínima e seleciona os presos para facilitar o sucesso da empreitada. Embora haja exemplos de gestão terceirizada em outros presídios, este foi realizado por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP) desde as etapas de licitação e de elaboração do projeto de construção.
No Compaj, havia, em 30 de dezembro de 2016, 1.224 presos, segundo levantamento da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (SEAP/AM). A unidade foi construída para abrigar 454 pessoas. No contrato com a Umanizzare, o governo do Amazonas informa que os serviços da contratada devem atender ao número estimado de 1072 internos, mais do que o dobro da capacidade do presídio.
“A privatização implica em gerar lucro a partir de uma experiência extremamente sofrida que é o encarceramento”, destaca Catarina Pedroso. Segundo ela, em vez de apontar para a possibilidade de redução drástica da população carcerária, “caminho necessário para minimizar as violações e os massacres que acontecem no sistema, a privatização é um passo a mais no seu incremento e no fortalecimento de uma sociedade punitivista”.
Simultaneamente à pressão pelo aumento dos índices de encarceramento, tal lógica leva, ainda, à piora das condições do ambiente prisional, opina o defensor público Bruno Shimizu. “O preso deixa de ser visto como sujeito da execução penal para tornar-se um verdadeiro ‘ativo financeiro’”. Segundo ele, o interesse do gestor privado é o aumento das margens de lucro por meio do corte de gastos. “Assim, os aportes financeiros com políticas públicas de reintegração passam a ser vistos não como investimento, mas como gasto.”
Conflito de interesses na assistência jurídica
Outro grave problema apontado pelos críticos da privatização dos presídios é “a substituição do modelo de assistência jurídica público, por meio da Defensoria Pública, pelo modelo privado”, alerta Shimizu. Segundo ele, na maioria das penitenciárias privadas, seja terceirizadas, seja PPPs, esse apoio é dado por advogados contratados pela própria empresa gestora, significando um claro conflito de interesses.
“Isso impede que denúncias de tortura, condições indignas ou violação de direitos dos presos sejam feitas, já que o advogado privado não denunciará seu próprio empregador. Além disso, não interessa ao corpo de advogados privados contratado o envolvimento em políticas de desencarceramento ou a cobrança do gestor privado acerca de garantias de direitos”, lamenta o defensor público. Catarina Pedroso conta que foi exatamente essa realidade que pôde observar durante sua visita ao Compaj, de Manaus, como perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Fernando Anunciação, presidente da Federação Nacional dos Servidores Penitenciários (FENASPEN), acrescenta, ainda, que a terceirização do sistema carcerário pode ser fonte de corrupção. “Para onde vai a diferença entre os custos médios dos presos nos presídios estatais e nos terceirizados, que é muito maior? Não se paga bem os funcionários, e não há investimento algum para a ressocialização do preso. Para onde está indo essa diferença de valores? Está indo para algum lugar”, questiona. A FENASPEN é filiada à Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB), que por sua vez é filiada à Internacional de Serviços Públicos (ISP).
Para o Ministério Público de Contas do Amazonas, por exemplo, há indícios de superfaturamento na gestão de presídios do Estado pela Umanizzare. No dia 4 de janeiro, o procurador de contas Ruy Marcelo Alencar de Mendonça solicitou ao Tribunal de Contas do Estado do Amazonas a rescisão dos contratos entre a empresa e o governo estadual.
O que fazer então?
Os especialistas consultados, e até o governo de Michel Temer, chamam a atenção para a necessidade de diminuir significativamente o número de presos no Brasil como uma das principais medidas de enfrentamento ao caos no setor. "A dimensão que o sistema penitenciário tomou é o principal motor de violações e de tensionamento nas unidades, uma vez que submete centenas de milhares de pessoas a condições torturantes e degradantes. O surgimento das facções não pode ser pensado senão como efeito desse processo", opina Catarina Pedroso.
Segundo os dados do Infopen, das mais de 600 mil pessoas presas no país em dezembro de 2014, 40% estavam cumprindo prisão provisória, ou seja, ainda não haviam sido sequer julgadas. Do total, 28% respondiam ou haviam sido condenados por tráfico de drogas, 25% por roubo, 13% por furto e 10% por homicídio. "A administração prisional fica a cargo, principalmente, do Executivo, que trata a questão prisional com descaso. O Judiciário, contudo, é muito permeado por uma ideologia de extermínio do inimigo e de controle das classes sociais entendidas como 'perigosas', distorcendo a lei para determinar o aprisionamento em casos nos quais a lei recomendaria ou permitiria a adoção de medidas alternativas à prisão", pontua o defensor público Bruno Shimizu.
Os estudiosos do sistema penitenciários ressaltam também a necessidade de descriminalizar o uso de drogas como forma de contribuir para o desencarceramento. "Os efeitos da proibição das drogas são nefastos, prendendo, sobretudo, pessoas negras e pobres, geralmente usuárias ou pequenos comerciantes de drogas", diz Catarina Pedroso, que lembra que, entre as mulheres, o índice de presas por tráfico chega a 63%.
Em 6 de janeiro deste ano, o ministro da Justiça Alexandre de Moraes apresentou o Plano Nacional de Segurança Pública. Em relação à questão carcerária, o documento propõe a diminuição do número de detentos, a construção de mais presídios, o endurecimento de penas para crimes mais graves e o maior foco na guerra às drogas, entre outras medidas. "Embora o Plano Nacional de Segurança Pública, em algum momento, aponte para a redução da população prisional, esse não é o efeito que as demais medidas devem produzir", avalia Pedroso.
Valorizar o agente penitenciário
Para Fernando Anunciação, da FENASPEN, o enfrentamento da crise nos presídios passa necessariamente pela valorização da profissão de agente penitenciário. "Ele precisa ser um servidor público de carreira, com salário adequado, capacitado. É necessário empoderar esse agente, que deve ser ouvido no debate sobre o sistema penitenciário. Não estamos nem na Constituição", diz.
Em 13 de janeiro, a FENASPEN divulgou uma nota em que critica as medidas "paliativas" do governo federal. De acordo com o texto, a falta de reconhecimento dos agentes penitenciários "tem contribuído para aprofundar" a situação. "O sistema penitenciário só será sério quando for tratado com a devida seriedade e associar as ações do profissional do cárcere (reconhecidamente profissional) com a educação, a escolarização, a disciplina e a possibilidade de trabalho aos internos", diz a nota.
A perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura ressalta as péssimas condições de trabalho às quais tais profissionais são submetidos, "o que os expõem a adoecimentos físicos e psíquicos e a uma rotina extenuante". Ela lembra que as Regras de Mandela, documento da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o tratamento de presos, apontam, entre outras questões, que os agentes devem atuar na condição de servidores públicos, com estabilidade no emprego, e receber capacitação e formação adequada para a complexidade da função. "As condições de trabalho são um fator muito importante para a ocorrência ou não de tortura. Sabe-se que, quando uma pessoa é submetida a condições violadoras de trabalho, as chances são grandes de que haja reprodução da violência pelos funcionários com as pessoas privadas de liberdade", destaca.
Paulo Malvezzi faz a ressalva, no entanto, de que tal valorização não é suficiente se o agente tem de trabalhar em uma unidade que tenha o triplo da capacidade de internos. "Quando você chega ao grau de hiperencarceramento em que estamos, toda a capacidade de gestão, e toda a capacidade de prover um mínimo de dignidade aos presos e trabalhadores desse sistema se esvai."
Uma da reivindicações dos agentes penitenciários é a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 308, que tramita na Câmara dos Deputados. A medida criaria a Polícia Penal, transformando os profissionais que atuam nos presídios em policiais.
Catarina Pedroso, no entanto, discorda da iniciativa: "A atribuição do agente penitenciário é radicalmente distinta da do policial, pois deve custodiar as pessoas presas, garantindo o acesso a seus direitos. No Brasil, em função do histórico de violência de Estado, as polícias têm um perfil ostensivo e militarizado. Nesse sentido, qualquer medida que embruteça ainda mais o ambiente prisional produziria mais violações e colocaria as vidas das pessoas – presos e agentes – ainda mais em risco."
Procuradas pela reportagem, a Umanizzare e a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Amazonas (SEAP/AM) não haviam respondido aos questionamentos até a publicação desta matéria.
* Igor Ojeda é coordenador de Comunicações da ISP Interaméricas