Juventude ameaçada PEC 18 atropela a Constituição e ameaça futuro de jovens brasileiros
Os governistas ressuscitaram uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que busca mudar a Carta de 88 no trecho em que esta proíbe o trabalho para menores de 16 anos.
Trata-se da PEC 18/2011, que vaga há mais de 10 anos pelos corredores da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, já teve dois pareceres contrários à sua legalidade, foi arquivada e desarquivada duas vezes e agora entrou novamente na ordem do dia, desta vez com manifestação favorável do deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), atual relator.
Martins é o mesmo deputado que, em 2019, alinhado ao pensamento de seu líder Jair Bolsonaro, propôs a extinção da Justiça do Trabalho.
Outras seis PECs, de conteúdo mais ou menos parecido, foram apensadas à proposta original. Quase todas advogam, direta ou dissimuladamente, a redução da idade mínima para 14 anos.
Trabalhar a partir dos 14 anos já é permitido, desde que o jovem entre na empresa na condição de aprendiz e que lhe seja garantida a continuidade dos estudos, com jornada reduzida e comprovação de frequência escolar. O alvo das propostas em análise na CCJ é justamente enfraquecer ou extinguir esse condicionante. Uma delas, a PEC 02/20, de autoria do deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), não só elimina qualquer menção à palavra “aprendiz”, como vai além e permite o trabalho a partir dos 13 anos.
O que está em jogo, afirmam representantes de entidades sociais e parlamentares do campo progressista, não é apenas o direito ao trabalho, mas as garantias de proteção à criança, ao adolescente e à juventude, a partir de marcos que privilegiam a formação escolar e o seu desenvolvimento pessoal, com acesso à cultura, ao esporte e ao lazer.
“Essa PEC, além de fragilizar ainda mais a situação de crianças e adolescentes no Brasil, sobretudo aquelas que estão em situação de vulnerabilidade social, ainda prejudica o combate ao trabalho escravo infantil, que, infelizmente, é uma realidade nos rincões do nosso país”, avalia Sânia Barcelos Reis, dirigente do Sindsep-MG e uma das coordenadoras do Comitê de Jovens da ISP-Brasil.
Futuro comprometido
O retorno da PEC à pauta da CCJ provocou imediata reação de 10 centrais sindicais brasileiras. Em nota conjunta divulgada em 8 de novembro, as centrais condenam esse novo ataque bolsonarista aos direitos sociais.
“O trabalho infantil gera diversas consequências negativas e irreversíveis para a saúde e a segurança das crianças e adolescentes envolvidos, bem como sobre seu desenvolvimento físico, intelectual, social, psicológico e moral”, afirma a nota.
Parlamentares de oposição também destacam os riscos que a aprovação da PEC traria para a formação da juventude. “A principal consequência”, explica a deputada Maria do Rosário (PT-RS), “seria o comprometimento de toda uma geração, que já está sofrendo enormemente pelo avanço da pobreza, da Covid 19 e que, nos dias atuais, ainda é ameaçada por perder direito à educação e ser devolvida à naturalização da situação de trabalho de exploração absoluta, como alguns propõe”.
Rosário, assim como outros parlamentares, apresentou voto em separado da bancada do PT pela inconstitucionalidade da proposta.
A CCJ, da qual Rosário é integrante, não tem poder para decidir sobre o mérito das matérias legislativas. Seu papel é dizer se as propostas apresentadas respeitam ou não as normas constitucionais. Nesse caso, a comissão vai decidir se é possível mexer na Constituição para reduzir um direito.
Não podemos negar que, de parte dos defensores da redução, há uma dimensão ideológica também, onde o lucro está maximizado.
Se a PEC 18 for considerada constitucional, tanto ela como as demais seguem para o colegiado deliberativo – uma Comissão Especial que vai decidir no mérito. Se a mudança for aprovada também nessa comissão, a matéria segue para o plenário.
Até lá, porém, há um longo caminho. Embora os governistas sejam majoritários na CCJ, Maria do Rosário acredita que há condições para matar a PEC 18 e suas congêneres no nascedouro, ou seja, na própria comissão. “Eu diria que eles têm uma maioria não consolidada [em relação ao tema], e estamos trabalhando para que a admissibilidade não seja aprovada”.
O parecer do relator Martins, favorável à constitucionalidade da mudança, foi lido no dia 3 de novembro. Os governistas tentaram colocar a matéria em votação nas sessões seguintes, mas não conseguiram. A batalha deve prosseguir nas próximas semanas.
Infância descartável
O alvo das PECs é o inciso XXXIII do Artigo 7º da Constituição, que diz:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos;
O texto faz parte do capítulo que trata das Garantias e dos Direitos Fundamentais, individuais e coletivos do povo brasileiro. É, portanto, considerado cláusula pétrea, já que a mesma Constituição, em seu Artigo 60, coloca os direitos e garantias individuais entre os pontos que não podem ser objeto de emendas tendentes a aboli-los. Além disso, outros dispositivos do texto constitucional convergem no sentido de vedar a regressão de direitos.
Os que defendem a mudança da regra tentam invalidar esse argumento, apoiados em pareceres paralelos, às vezes descontextualizados, e em muito malabarismo retórico e jurídico.
Para além do debate técnico, porém, é na discussão do mérito que as posições e as questões centrais afloram. A base bolsonarista na CCJ claramente despreza os seguimentos que se preocupam com a formação da juventude e com os direitos básicos de crianças e adolescentes, reduzindo tal posicionamento a uma questão de fundo ideológico – visão exposta inclusive pela presidenta da comissão, a deputa Bia Kicis (PSL-DF).
Maria do Rosário devolve. “Não podemos negar que, de parte dos defensores da redução, há uma dimensão ideológica também, onde o lucro está maximizado. Há um tratamento do ser humano e da infância, sobretudo, como descartável. A presidenta da CCJ, quando fala da ideologização, ela está falando de si própria, da sua linha ideológica, que se coloca a serviço do mercado, do interesse de poucos e do lucro, enquanto tantos brasileiros estão morrendo”.
Exército mirim de desempregados
Além de comprometer o futuro da juventude, a proposta, na avaliação de seus críticos, cumpre outro objetivo, igualmente prejudicial ao conjunto dos trabalhadores: rebaixar ainda mais o valor da mão de obra, jogando milhões de adolescentes no mercado de trabalho e aumentando o índice de desemprego entre pais e mães de família.
“Quantos adultos serão colocados para fora e substituídos por crianças, adolescentes a partir dos 14 anos, porque estes receberão salários menores?”, pergunta Maria do Rosário.
Serão mais explorados e vão contribuir para o aumento do desemprego e do subemprego
O professor Rodrigo Rodrigues, presidente da CUT-DF, tem a mesma preocupação. “Serão mais explorados e vão contribuir para o aumento do desemprego e do subemprego”, afirmou ele, durante audiência pública na mesma CCJ para debater o tema, no último dia 11.
Indiferentes a essa realidade, os defensores da PEC argumentam que o rebaixamento da faixa etária para o trabalho teria o poder de oferecer proteção a crianças que exercem atividades como a mendicância e a venda de balas em semáforos.
Os parlamentares de oposição desmontam este raciocínio. “A fragilização [da Lei] em nada mudará a condição das crianças que hoje realizam atividades extenuantes para contribuir com o próprio sustento, haja vista que elas seriam inseridas como mão de obra barata no atual mercado de trabalho que já conta com milhões de desempregados”, diz o voto em separado apresentado pela bancada do PSOL na CCJ.
“O caminho para evitar a marginalização de crianças pobres”, continua o texto do PSOL, “está na formulação de políticas públicas concretas, que visem a proteção do vínculo escolar e não joguem nos ombros das crianças e dos adolescentes o ônus de prover seu próprio sustento”.