Poder corporativo O Tratado da Carta da Energia é a antítese do Acordo de Paris
Um acordo comercial e de investimento menos conhecido, o TCE permite que empresas de combustíveis fósseis processem em tribunais privados os países signatários que adotem políticas de mitigação das mudanças climáticas e em favor da universalização do fornecimento de energia, além de favorecer a privatização do setor. Um novo guia que tem a Internacional de Serviços Públicos entre suas copublicadoras identifica os defensores do tratado e seus argumentos, e oferece provas para refutá-los.
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Um tratado que existe há quase 30 anos e que busca fundamentalmente a proteção para os investimentos estrangeiros de corporações energéticas passa atualmente por um processo de "modernização" e expansão; Mas um acordo que já nasceu nocivo em sua essência não pode ser consertado a não ser no sentido de favorecer ainda mais os interesses corporativos. Essa é a visão de inúmeras organizações da sociedade civil em todo o mundo, entre elas a Internacional de Serviços Públicos (ISP).
O Tratado da Carta da Energia (TCE) inclui 53 países da Europa Ocidental e Oriental, Ásia Central e Ocidental e Japão, Jordânia e Iêmen, assim como a União Europeia (UE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (Euratom). Em seu objetivo de expansão, busca ampliar seu alcance geográfico a África, Ásia e América Latina. Nessa última região, pelo menos Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, Guiana e Panamá já iniciaram o processo de adesão ou manifestaram interesse em fazê-lo.
"É inacreditável que vários países da América Latina estejam debatendo a adesão a um tratado dos anos 1990. A um tratado da pior qualidade, que somente promove a privatização do setor energético e os consequentes aumento das tarifas e redução da universalização do fornecimento de energia. A um tratado que favorece o enriquecimento das empresas transnacionais contra os interesses da população", afirma Jocelio Drummond, secretário regional da ISP para as Américas.
"É inaceitável que esse tipo de negociação seja realizada sob total secretismo, sem a participação popular, sem que haja debate com os trabalhadores e trabalhadoras, com os governos locais e municipais, com os meios acadêmicos, com ninguém. É uma adesão pura e simplesmente aos interesses das transnacionais. Não podemos concordar com isso e devemos unir forçar na luta contra o TCE", acrescenta ele.
Entre suas normas está a que permite que, através do mecanismo de arbitragem de diferenças estado-investidos (ISDS), as empresas de combustíveis fósseis processem, em tribunais privados internacionais, os países signatários que adotem qualquer ação que prejudique seus lucros, como políticas de mitigação das mudanças climáticas e em favor da universalização do fornecimento de eletricidade. Assim, os governos podem ser obrigados a pagar somas elevadas em indenizações. Ao proteger investimentos como minas de carvão, jazidas de petróleo e gasodutos, o TCE é considerado um forte obstáculo ao Acordo de Paris, o tratado no âmbito das Nações Unidas que busca reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
Por essa razão, a própria Comissão Europeia afirmou que o Tratado é "antiquado' e "não é mais sustentável". Diante das muitas críticas, os Estados membros do TCE aprovaram em novembro de 2018 uma lista de temas para "modernizar" o tratado, embora vários deles questionem a necessidade de uma alteração e haja fortes interesses pela manutenção dos privilégios às corporações de energia.
No contexto dessa disputa, é lançado o guia "Desmascarando os mitos em torno do Tratado da Carta da Energia", elaborado por PowerShift, Corporate Europe Observatory (CEO) e Transnational Institute (TNI) e copublicado por várias organizações sociais e da sociedade civil, entre elas a Internacional de Serviços Públicos. A publicação pretende ajudar ativistas, cidadãos preocupados, jornalistas e autoridades a enfrentarem a propaganda em favor do TCE ao identificar os defensores do tratado e 18 de seus argumentos, e oferecer provas para refutá-los baseadas em pesquisas exaustivas.
Desmascarando os mitos em torno do Tratado da Carta da Energia (versão em português resumida do original)
Em um dos capítulos de sua versão original, o guia lista seis motivos para se retirar do TCE ou nunca aderir a ele:
Motivo 1: O TCE é o acordo de investimento mais perigoso do mundo.
A arbitragem entre investidor e Estado por causa do TCE não é um sistema justo ou independente para solucionar diferenças entre Estados e investidores. Nenhum acordo do mundo provocou mais processos de investimentos contra Estados do que o TCE. Até hoje foram registrados 134 casos em razão do ISDS e esse número segue aumentando. Nos processos do TCE, tribunais integrados por três advogados particulares podem obrigar governos a pagar bilhões em dinheiro dos contribuintes para indenizar as corporações por supostos "lucros futuros", entre outras justificativas.
Motivo 2: O TCE mina a democracia e poderia impedir ações pelo clima.
É um instrumento para pressionar os tomadores de decisão e para fazer que os governos paguem quando tentam reverter a crise climática mundial e proteger os interesses públicos. É uma ameaça específica a uma transição urgentemente necessária para abandonar os combustíveis fósseis e que exige regulamentações ambiciosas que limitarão inevitavelmente os lucros de algumas das principais empresas de gás, petróleo e carvão. O TCE já foi utilizado para atacar proibições a projetos de combustíveis fósseis, restrições ambientais a plantas termoelétricas e a eliminação progressiva do carvão.
Motivo 3: O TCE limita a soberania e o espaço de políticas a serem reguladas segundo o interesse público, incluindo o fornecimento de energia a preços acessíveis.
O TCE pode ser utilizado para impedir todo tipo de regulação sobre investimentos em energia, incluídos os impostos. Também pode ser utilizado para consolidar privatizações que fracassaram no setor de energia e como obstáculo a tentativas de regular os preços da eletricidade de maneira que seja mais acessível a todas as pessoas.
Motivo 4: O privilégios que o TCE reserva aos investidores não proporcionam os benefícios econômicos que lhe são atribuídos.
Não há nenhuma prova de que o acordo ajude a reduzir a pobreza energética nem facilite o investimento estrangeiro direto, e menos ainda em energias renováveis.
Motivo 5: A modernização do TCE não resolverá seus defeitos.
A modernização do TCE é uma tentativa de relegitimar um tratado antiquado, perigoso e cada vez mais controverso. Mesmo se os governos entrem em um acordo para modernizar o TCE, as propostas que atualmente estão sobre a mesa não conseguirão adaptar o novo TCE ao Acordo de Paris e servirão de obstáculo aos esforços de se alcançar um Pacto Verde Europeu.
Motivo 6: O TCE deixa os países atados por décadas.
Quando um país adere ao TCE, fica atado ao tratado durante pelo menos 26 anos, mesmo que os governos sucessivos desejem abandoná-lo. Embora os governos possam se retirar do TCE cinco anos depois de terem aderido, e sua retirada entre em vigor um ano depois, pode continuar sendo alvo durante mais 20 anos de processos relacionados a investimentos realizados anteriormente,