Nota sobre participação da sociedade civil em reunião organizada pelo governo brasileiro para discussão do Acordo sobre Pandemias

Em oficina realizada 5 de setembro último na FES-Brasil, o Embaixador Tovar da Silva Nunes anunciou a realização de uma reunião entre governo e sociedade civil para discussão de temas relativos o acordo sobre pandemias atualmente negociado no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), prevista para o final do mês de outubro

As entidades abaixo-assinadas saúdam esta importante iniciativa em que poderão apresentar sua visão sobre o processo negociador, além de propostas de redação do acordo que abrangem tanto novos dispositivos como o resgate do papel que o Brasil vem desempenhando na história da saúde global. Entre os temas em negociação encontram-se agendas históricas da sociedade civil brasileira, como os direitos de propriedade intelectual, o acesso a tecnologias e os direitos humanos relacionados à saúde.

No entanto, ao final da mesma oficina, um representante do Ministério das Relações Exteriores anunciou que a reunião com a sociedade civil prevista para outubro teria o formato "FENSA" (Framework of engagement with non-State actors, em português Quadro de Colaboração com Agentes Não Estatais), referindo-se expressamente à participação do setor privado.

Adotado em 2016 para proteger a reputação da OMS, frequentemente acusada de sofrer influência indevida por parte de seus financiadores, o FENSA classifica os atores não-estatais em 4 categorias: organizações não-governamentais (ONGs), setor privado, fundações filantrópicas e instituições acadêmicas. Desde sua adoção, o FENSA vem sendo duramente criticado pela sociedade civil por equiparar as entidades do setor privado a outros atores não estatais, deixando de reconhecer que possuem natureza, interesses e formas de atuação profundamente diversas; e por não regular adequadamente os conflitos de interesse nas atividades de colaboração da OMS com o setor privado, legitimando canais de influência indevida, entre outras razões.

A despeito de seus equívocos e limites, em nenhum momento o FENSA determina que as 4 categorias de atores não-estatais sejam chamadas a participar conjuntamente de reuniões. Ao contrário, em seus anexos, o FENSA estipula regras específicas para cada categoria de atores no que se refere à participação em sessões dos órgãos deliberativos da organização, consultas, audiências e outras reuniões, deixando claro que elas podem ocorrer individualmente com cada categoria, e estabelecendo um regramento mais detalhado das relações da OMS com o setor privado, com ênfase na gestão de riscos. A propósito, o artigo 45 do FENSA determina particular cautela à OMS ao colaborar com entidades do setor privado ou outros atores cujas políticas afetem negativamente a saúde humana.

Por outro lado, a própria OMS criou recentemente uma comissão específica para canalizar a participação da sociedade civil (WHO Civil Society Commission - CSO Commission), cujos termos de referência determinam a participação exclusiva de ONGs com objetivos de interesse público e desprovidas de fins comerciais ou lucrativos. A CSO deverá manter um diálogo estreito, fomentar a colaboração e formular recomendações à OMS. Entre os objetivos desta comissão está o de incrementar a participação de ONGs na formulação de normas e padrões, inclusive o uso mais sistemáticos de audiências públicas e consultas.

Em síntese, ao anunciar um "modelo FENSA" de reunião com a sociedade civil para justificar a presença do setor privado na discussão do acordo sobre pandemias, o governo brasileiro recorre a um marco regulatório impróprio para este fim, por ser destinado à principalmente ao financiamento e à colaboração técnica permanente entre OMS e atores não-estatais; por ser rechaçado pelos próprios atores a que se destina ao regular suas relações com o setor privado em um mesmo quadro com outros atores sociais; e porque o próprio FENSA não prevê a presença simultânea das 4 categorias de atores nas diferentes formas de participação.

Mais do que isto, ao equiparar setor privado e movimentos sociais, reduzindo o tempo de fala e o reconhecimento simbólico de entidades que defendem o acesso universal à saúde e os direitos dos trabalhadores da saúde, este formato rompe uma longa tradição dos governos democráticos brasileiros de valorizar a participação da sociedade civil na definição de posições sobre temas da saúde pública e da saúde global. Cabe recordar que a participação social é um princípio do Sistema Único de Saúde, que será particularmente impactado pelos dispositivos do acordo sobre pandemias, tanto pela adoção de novas normas como pela eventual falta delas.

Ademais, vemos com grande preocupação a participação do setor privado na formulação da posição brasileira sobre normas que terão impacto sobre a regulação da indústria, de corporações e empresas, configurando um patente conflito de interesses.

Por todo o exposto, as entidades abaixo assinadas solicitam que o governo brasileiro convoque uma reunião específica para discussão com a sociedade civil organizada que atua nos temas concernentes ao acordo sobre pandemias, para que suas propostas possam ser debatidas com o devido tempo e profundidade, tendo como referência o interesse público e a plena realização do direito à saúde consagrado pela Constituição Federal.

Assinam essa nota:
Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS - ABIA
Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco AGANIM/RJ
Associação de Funcionárias e Funcionários da Fundação Oswaldo Cruz - ASFOC
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Seguridade Social - CNTSS Confederação do Trabalhadores Municipais - CONFETAM
Instituto EQÜIT Federação Nacional dos Farmacêuticos - FENAFAR
Federação Nacional dos Psicólogos - FENAPSI
Federação Nacional dos Enfermeiros - FNE FORUM AIDS/MA
Grupo de Resistência Asa Branca - GRAB/CE
Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual - GTPI
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - Ibase
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC
Instituto Nacional de Estudos Socieconômicos - Inesc
Internacional dos Serviços Públicos - ISP
Rede Brasileira pela Integração dos Povos - Rebrip
REDE JOVEM RIO+
Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS do Maranhão - RNP+/MA
Rede Nacional de Pessoas Vivencdo com HIV/AIDS de Pernambuco - RNP+PE
Sindicato Estadual dos Enfermeiros do Estado de São Paulo - Seesp
Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo - SindSaúde/SP
Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo - Sindsep-SP
Sindicato dos Psicólogos de São Paulo - SinPsi/SP
Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais - UAEM