Missão Yanomami luta por curar um território violentado

Em janeiro, denúncias sobre a situação das Terras Indígenas Yanomami na Floresta Amazônica se espalharam pelo Brasil, ganhando espaço nas grandes mídias e tornando-se pauta de discussões dentro e fora das redes sociais, mas, em julho de 2022, entidades indigenistas já pautavam essa preocupação. Para entender melhor a gravidade dessas denúncias, é necessária uma contextualização sobre a história de luta desses povos

Localizada entre os estados Roraima e Amazonas, as Terras Indígenas Yanomami contam com 9,6 milhões de hectares, cerca de 300 comunidades de difícil acesso e mais de 30 mil habitantes. Foi demarcada em 1992, após uma operação do governo junto as Forças Armadas, que tirou quase 40 mil garimpeiros das terras. Porém, ao longo dos anos, os garimpeiros voltaram mais organizados e com maior força, mesmo que em menor quantidade - atualmente, a informação é de pelo menos 20 mil garimpeiros na região - contando, inclusive, com o apoio do crime organizado, que financia o narcotráfico na região. Mas foi nos últimos 4 anos que as atividades dos garimpeiros ilegais e suas consequências se intensificaram. A busca é por ouro e cassiterita - mineral portador de estanho, presente na produção de tintas, plásticos e fungicidas – e contamina com mercúrio as águas que os indígenas bebem, afetando também a produção de alimentos e pesca.

Além da contaminação das águas, principal causa da desnutrição entre os yanomamis, os garimpeiros ilegais difundem outras tragédias, como a malária, doença que, em 2021, teve 50% dos casos registrados concentrados em terras indígenas; parasitoses intestinais e oncocercose, conhecida também como “mal do garimpeiro” doença parasital que afeta pele e olhos podendo causar cegueira; violência sexual, ameaças e tráfico de drogas e álcool também estão na lista de crimes aos quais as comunidades indígenas são submetidas.

A missão para salvar os povos indígenas

Em 2022, líderes da luta contra os garimpeiros escreveram o relatório “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na terra indígena Yanomami e propostas para combate-lo”, com a proposta de descrever a evolução e as consequências do garimpo ilegal nas terras indígenas. O atual governo brasileiro se comprometeu a, novamente, expulsar o garimpo ilegal e para isso, a Missão Yanomami foi colocada em prática. O COE – Centro de Operação de Emergência, coordenado pelo SESAI – Secretária Especial de Saúde Indígena, traçou os passos necessários para ter sucesso na missão.

Os objetivos são: a vigilância para cessar o garimpo; assistência de saúde de curto, médio e longo prazo para os povos da região e avaliação do impacto social ambiental das atividades de garimpo nos últimos anos. Tudo foi descrito no relatório “Missão Yanomami” publicado ainda em janeiro. Em 22 de fevereiro, foi publicado um Informe Diário, com informações sobre as atividades prestadas durante os dias que se passaram da missão, além de informar que dos atendimentos, 53,2% eram de crianças até 14 anos, o relatório também listou as doenças tratadas:

Gráfico das  queixas atendidas durante a missão yanomami. Imagem retirada do Informe do dia 22/02
Gráfico das queixas atendidas durante a missão yanomami. Imagem retirada do Informe do dia 22/02

Na prática: um depoimento de quem esteve nas Terras Yanomami

Docente, pesquisador e enfermeiro, Marcelo Carvalho da Conceição  é especialista em urgência e emergência, terapia intensiva, atendimento pré-hospitalar e hematologia. Profissional de enfermagem a 29 anos, principalmente nas áreas de cuidados críticos como UTI’s e SAMU. Além de ser dirigente sindical do SEESP – Sindicato dos enfermeiros do Estado de São Paulo e ter cadastro na Força Nacional do Sistema Único de Saúde - SUS desde 2018.

Marcelo Carvalho em frente a UBSI - Kaparoa segurando a bandeira do SEESP
Marcelo Carvalho em frente a UBSI - Kaparoa segurando a bandeira do SEESP

Em 31 de janeiro, ele foi convocado para a Missão Yanomami com embarque em 3 de fevereiro para Boa Vista – RR. O primeiro grupo a entrar no território, do qual Marcelo fez parte, foi composto por 40 profissionais médicos; enfermeiros; técnicos de enfermagem; psicólogos; nutricionistas e farmacêuticos. No primeiro dia, o grupo focou na organização dos insumos e medicamentos a serem utilizados durante a missão e, no segundo dia, participaram de uma oficina preparatória, ministrada pelo antropólogo Marcos Pellegrini, sobre a cultura e o modo de vida Yanomami, mais tarde, participaram de outra oficina com psicólogos para preparo emocional sobre a experiência que vivenciariam pelos próximos dias.

Os profissionais foram divididos em 10 equipes, que foram espalhadas pelos polos de Surucucu, Auaris e Catrimani. A equipe de Marcelo e outras duas equipes, foram designadas para o polo de Surucucu, que fica a quase 2 horas de voo de Boa Vista, onde também fica a base militar do exército que aloja o 4° pelotão de fronteira do exército brasileiro. Depois, Marcelo e sua equipe seguiram para o subpolo de Kataroa, composto por 14 comunidades, a 20 minutos de voo de Surucucu, onde ficaram até quase o fim dos seus dias de missão.

Marcelo conta que uma das principais dificuldades foi manter os pacientes internados na unidade da UBSI – Unidade Básica de Saúde indígena, “Esse subpolo, que é uma construção de madeira, de dois andares, possui ainda um anexo, que pode ser descrito como uma área telhada sem paredes, que os indígenas ficam internados, pois como os indígenas não aceitam ficar deitados, mesmo em rede, dentro da unidade, eles ficam nessa área externa em que eles estendem a rede. Algumas vezes, além disso, eles constroem pequenas edificações, que eles chamam de Tapiri, que é uma cabaninha no meio da floresta com um telhado de folha de bananeira. Então, eles são atendidos na unidade e dormem nesse local.”. Outras dificuldades citadas pelo enfermeiro são: a questão do idioma, essa contornada com o apoio de tradução de indígenas com noções de português e a necessidade de exames sejam feitos através do toque, apesar de receosos, com conversa e paciência, tanto os adultos quanto as crianças autorizavam a equipe médica a realizarem os exames.

Foto de arquivo pessoal: construção de madeira localizada em frente a UBSI-Kataroa
Foto de arquivo pessoal: construção de madeira localizada em frente a UBSI-Kataroa

A essa altura, os casos de desnutrição e pneumonia mais críticos já haviam sido transferidos para Boa Vista. Na comunidade, as crianças e os adultos sofriam com casos descritos como "mais leves”, dos quais a equipe médica, que contava com uma nutricionista, pôde tratar sem a necessidade de transferência. Casos de pneumonia; insuficiência respiratória aguda; de ascaridíase; malária; tungíase; cistite; traumas por quedas; diarreia aguda também foram atendidos pela equipe de Marcelo em Kataroa. Durante dois dias, os profissionais realizaram buscas ativas indo até as comunidades dos indígenas, caminhando por até 5 horas em floresta fechada, guiados pelos ASI’s – Agentes de saúde Indígena, que são indígenas com treinamento básico em saúde e que falam português.

Em 14 de fevereiro, após quase dez dias de missão, a equipe de Marcelo voltou para o polo de Surucucu. Nesse dia, pacientes indígenas feridos com arma de fogo foram atendidos no polo, Marcelo explicou que casos como esse são comuns quando indígenas enfrentam os garimpeiros. Dois dias depois, os profissionais voltaram para Boa Vista e realizaram reuniões de avaliação de atividades com todas as equipes e aproveitaram para trocas de experiência.

Marcelo conta ainda que se considera um profissional preparado para situações críticas, no entanto a missão com os indígenas para ter superado muito a expectativa de necessidade de preparo, segundo ele, porque para além do preparo, “ficamos muito suscetíveis às dificuldades materiais locais em atendimento, estando em floresta você não tem acesso a outros materiais. Tínhamos um estoque reduzido de medicamentos, para diversos diagnósticos. [...] Ademais, foi uma experiência única, 14 dias que valeram por 14 anos.”. O profissional ainda cita que o contato com a cultura Yanomami o proporcionou uma imersão cultural inimaginável.

O trabalho para curar as feridas causadas pelas atividades do garimpo ainda não acabou! Outros profissionais como o Marcelo ainda serão necessários para os cuidados com os indígenas Yanomami. Essa mobilização só é possível, no entanto, por causa da existência e resistência de um Sistema Único de Saúde e as entidades que fazem parte dele - como a Força Nacional que convocou os profissionais necessários e o COE – Centro de Operações de Emergência em Saúde, que coordena a missão -, além de um governo comprometido com os serviços públicos de saúde para atendimento universal a todxs em todo o território nacional.

Esperamos que todxs os profissionais de saúde que participaram da missão possam ser reconhecidos por seu trabalho, especialmente as e os enfermeiros, categoria que, ao longo de toda a pandemia da Covid-19, mostrou e segue mostrando sua importância na linha frente de atendimentos às grandes tragédias do povo brasileiro. A PSI trabalha com nossas filiadas para que xs enfermeiros consigam a implantação do Piso Salarial Nacional para a Enfermagem no Brasil.

É possível ter acesso aos informes diários da Missão Yanomami no site do governo federal.