Gestão da pandemia no governo de Jair Bolsonaro será alvo do Tribunal Permanente dos Povos

A denúncia foi apresentada por Comissão Arns, Coalizão Negra por Direitos, Internacional de Serviços Públicos e Apib. Reportagem publicada orginalmente no Brasil de Fato

Nesta terça (24) e quarta-feira (25), ocorre o Tribunal Permanente dos Povos (TPP), que irá julgar desta vez o presidente Jair Bolsonaro (PL) por crimes cometidos contra a humanidade durante a pandemia de covid-19 e ameaças à democracia brasileira.  

Fundado em 1979, o TPP substituiu o Tribunal Russell, que investigou crimes cometidos pelos Estados Unidos durante intervenção militar no Vietnã e até mesmo as ditaduras militares no Brasil e no Chile. Em dia 50ª sessão, o evento ocorre em Roma, na Itália, e, de forma híbrida, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). 

A denúncia contra o capitão reformado foi apresentada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Internacional de Serviços Públicos (ISP), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coalizão Negra por Direitos, com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e outras entidades ligadas à defesa dos direitos humanos.  

O corpo de jurados é composto por 12 personalidades e um presidente que vai ouvir as testemunhas dos casos e a acusação preparada pela advogada e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, Eloísa Machado. 

Segundo o ex-ministro de Direitos Humanos e integrante da Comissão Arns, Paulo Sérgio Pinheiro, o governo de Jair Bolsonaro terá direito de defesa, mas ainda é incerto que o Planalto envie algum representante. "A ata de acusação foi entregue ao embaixador do Brasil na Itália, remetida ao ministro das Relações Exteriores e ao presidente da República. Nós guardamos um espaço de 50 minutos para a defesa do presidente. Se o governo não indicar – esperamos que indique –, o secretário-geral do Tribunal nomeará um relator para apresentar a defesa dos atos indicados pela acusação." 

Importância 

Apesar de ser um órgão de opinião, sem efeitos condenatórios do ponto de vista jurídico, o Tribunal é “sumamente importante”, uma vez que o Brasil se encontra “em uma conjuntura de escalada de um golpe de Estado contra o Estado de direito”, Pinheiro, em entrevista à TVT. “Não há momento melhor para realizar esse julgamento sobre os crimes praticados por este governo, seus ministros e especialmente pelo presidente da República.” 

Ao ser questionado se Bolsonaro poderia ser responsabilizado por eventuais crimes cometidos em sua gestão, o ex-ministro foi cético. "No âmbito nacional, não vejo nenhuma possibilidade de o presidente ser processado ou sancionado", destacou.

"Um exemplo disso é o total pouco caso com as denúncias da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a covid, o procurador-geral da República não fez absolutamente nada. Não é um exagero, ele não fez rigorosamente nada. As instituições não estão funcionando, o que ajuda essa escalada para o golpe do Estado com que sonha o presidente da República", pondera. 

“Na ordem internacional, tudo é muito lento. Temos as denúncias no Tribunal Penal Internacional (TPI) – importante não confundir com o Tribunal de Justiça Internacional, órgão criado nos anos 10, que julga especialmente os Estados, é também em Haia, o que causa a confusão. O TPI é muito mais recente e há quatro denúncias contra o atual presidente. Recebemos uma resposta do secretariado que a nossa está sendo examinada, mas isso não vai ocorrer no ano de 2022", disse.

"Então, é muito oportuno que esse tribunal de opinião ocorra para compensar esse lapso de tempo tão largo que consagra dentro do âmbito do seu mandato a total impunidade", acrescentou. 

Na mesma linha, Shirley Marshal, presidente da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE) – uma das entidades que irá representar a Internacional de Serviços Públicos (ISP), junto com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) –, afirma que o julgamento é importante para que “futuramente” possam haver responsabilizações “pelo o que aconteceu em nosso país”. “A gente vê [o Tribunal] como uma esperança que se faça justiça para o que aconteceu.” 

Marshal afirma que a junção das entidades que estarão presentes é de “grande representatividade” da população brasileira. “Daí a importância desse tribunal. Durante as nossas falas, nós vamos dizer sobre a demora na questão das vacinas, no negacionismo, a questão da falta de informação, de uma série de fatores que dizem respeito não só aos nossos trabalhadores e às populações representadas pelas entidades, mas a toda conjuntura que o país acabou sofrendo”, afirma a presidente da FNE. 

A representante da FNE também afirma que o julgamento pode trazer um pouco de “esperança para o povo brasileiro”, perdida durante a pandemia. “Quando se tem esse tribunal que se propõe a ouvir a população para que haja o processo de constituição de justiça, isso traz de volta a esperança que devemos ter para continuar lutando pelos nossos direitos.” 

Profissionais da saúde 

Um dos trabalhos das entidades que denunciaram o presidente é analisar quais foram as populações mais atingidas pela má gestão da pandemia de covid-19. Nesse debate, afirma Shirley, os profissionais da saúde foram “invisibilizados”.  

“Temos aqueles trabalhadores que atuaram no setor saúde que se tornaram completamente invisibilizados, como recepcionistas e pessoal dos serviços gerais, que morreram durante a pandemia e não foram sequer contabilizados como trabalhadores da saúde”, afirma Marshal. 

“A gente teve uma série de situações com os profissionais de saúde que foram para o enfrentamento de uma pandemia apenas com seus corpos. Esses trabalhadores não foram priorizados em relação aos equipamentos de proteção individual e à vacina. Todo mundo trabalhava no mesmo setor, mas tinha a prioridade de fornecer equipamentos para os médicos e depois, se tivesse, para os enfermeiros e auxiliares. A mesma coisa com a vacinação”, relata.

De acordo com Marshal, a situação a que foram submetidos os profissionais da saúde durante a pandemia será justamente o tema a ser tratado no Tribunal pelas entidades que representarão a ISP. “A gente não sabe nem ao certo quanto trabalhadores morrerem por covid-19 com a falta de informação. A gente também vai falar sobre isso, porque as informações são extremamente importantes para nós traçarmos um planejamento estratégico para trazer uma melhor assistência para esses trabalhadores.” 

Shirley também destaca que a sobrecarga desses trabalhadores também será levada para o TPP. “O perfil majoritário dos trabalhadores de saúde é feito de mulheres, pobres e periféricas, que têm duplo vínculo de trabalho, porque têm salários muito baixos e ao mesmo tempo são contratos de trabalho muito precários, culminando em muitos transtornos da ordem de saúde mental”, lembra a presidente da FNE. 

De acordo com a pesquisa Depressão e Ansiedade Entre Trabalhadores Essenciais do Brasil e da Espanha Durante a Pandemia de Covid-19, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Universidade de Valência (Espanha), cerca de 47,3% dos trabalhadores de serviços essenciais foram afetados por sintomas de ansiedade e depressão, durante a pandemia de covid-19, no Brasil e na Espanha. 

Entre os dois países, o Brasil é que apresenta dados mais elevados. Dos trabalhadores de serviços essenciais que tiveram sintomas de depressão e ansiedade, 55% deles são brasileiros e 23% são espanhóis. 

O relatório final da CPI da Pandemia, apresentado no final de outubro do ano passado, também será relembrado no TPP. Os senadores chegaram a indiciar o presidente Jair Bolsonaro (PL) pelos crimes de epidemia com resultado em morte, infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, crimes contra a humanidade nas modalidades extermínio e perseguição, violação de direito social e de decoro do cargo.