Eu vi colegas morrerem de ebola. Profissionais da saúde não devem se tornar mártires do coronavírus

Nós seremos o grupo mais afetado por esse surto. Os governos devem desistir de aplicar medidas de austeridade e garantir serviços de cuidados com trabalhadores e recursos suficientes.

Publicado originalmente no jornal The Guardian

Imagine ser forçado a fazer escolhas impossíveis sobre quem vai receber tratamento e quem será deixado para morrer. Imagine voltar para casa, para a família, sabendo que pode estar colocando-os em risco.

Essas foram as situações horríveis que nós, trabalhadorxs da saúde, vivemos enquanto enfrentávamos o surto de ebola em 2014 na Libéria. Para mim, é uma grande tragédia ouvir histórias parecidas vindas dxs colegas ao redor do mundo que estão enfrentando o coronavírus. Aterroriza-me ver que os sistemas de saúde dos países desenvolvidos estão a ponto de colapsar – não quero nem imaginar o que esse vírus fará na minha região logo depois.

Nós, trabalhadorxs da saúde, não somos heróis. E não devemos nos tornar mártires no trabalho. Nós somos profissionais. Precisamos de equipamentos de proteção individual para que possamos nos manter saudáveis enquanto salvamos vidas. Precisamos de sistemas públicos de saúde com trabalhadorxs e recursos suficientes. Precisamos de financiamento suficiente do governo para o nosso setor.

A triste realidade é que sistemas públicos de saúde têm sidos financiados de forma insuficiente, sucateados – além de privatizados e/ou terceirizados. O desastroso fracasso das políticas de austeridade está exacerbando os impactos desse surto no nosso setor – com consequências fatais.

Fragmentados, os sistemas de saúde com fins lucrativos são simplesmente incapazes de responder efetivamente a crises como os surtos de ebola ou coronavírus. Muitas pessoas infectadas nos EUA não têm acesso adequado a atendimento médico e, portanto, estão correndo risco de acentuar a propagação. A única saída para enfrentar esse surto é através de uma resposta massiva da saúde pública, sob o comando do governo – através do estabelecimento de um sistema universal de saúde.

Durante a crise do ebola, meu sindicato lutou com unhas e dentes por equipamentos de proteção individual para trabalhadorxs – no entanto, o subfinanciamento crônico dos setores essenciais, em parte por causa da condicionalidade embutida nos empréstimos do FMI e do Banco Mundial, significava que os recursos necessários simplesmente não estavam disponíveis. A doença acabou matando mais de 8% dxs trabalhadores da saúde no país. Muitos dos meus companheiros morreram nessa luta.

Nesse contexto, conheci trabalhadorxs do mundo inteiro através da federação sindical global Internacional de Serviços Públicos (ISP), engajados na luta por sistemas de saúde pública mais robustos. Nossa campanha “Trabalhadores Protegidos Salvam Vidas” exigiu que os governos aumentassem o financiamento no setor e garantissem que, no momento em que surgissem emergências de saúde pública, trabalhadores não fossem sacrificados na resposta a elas. Infelizmente, nossos apelos foram amplamente ignorados. E agora o pior está vindo.

Nós, trabalhadorxs da saúde, seremos o grupo mais afetado pelo surto desse vírus. Muitos de nós vão morrer, nossas famílias serão abandonadas. Muitas das nossas mortes poderiam ter sido evitadas. Desta vez, precisamos aprender. Governos precisam aumentar massivamente o financiamento para sistemas públicos de saúde. Está na hora de deixar para trás de uma vez por todas a austeridade. A necessidade de um sistema de saúde público robusto e bem financiado nunca foi tão clara.

*George Poe Williams é enfermeiro e membro do Sindicato Nacional de Trabalhadores da Saúde da Libéria.