Ataque ao serviço público avança no Congresso brasileiro

Caso seja aprovada, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32 acabará com a estabilidade das trabalhadoras e trabalhadores públicos e abrirá caminho para a privatização dos serviços públicos, entre outros pontos negativos. Por Elden Ribeiro

Servidoras e servidores públicos, e o próprio serviço público, estão mais uma vez sob forte ameaça: a proposta de reforma administrativa enviada ao Congresso brasileiro em setembro de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro. Sob a denominação oficial de Proposta de Emenda à Constituição 32, ou PEC 32, a medida, se aprovada, acabará com a estabilidade das trabalhadoras e trabalhadores públicos e abrirá caminho para a privatização dos serviços públicos, entre outros pontos negativos.

Após ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em maio de 2021, a comissão especial criada na casa para tratar da matéria chancelou na última quinta-feira, 23 de setembro, o texto substitutivo protocolado nesta pelo relator, deputado Arthur Maia (DEM-BA).

Tal aprovação aconteceu sob gritos de parlamentares da oposição: “No plenário perde!” Isso porque nesse foro a aprovação é incerta: serão precisos 308 votos favoráveis, ou seja, três quintos dos deputados, e a votação ocorrerá em dois turnos. Os partidos de oposição que compõem o bloco da Minoria na Câmara (PT, PDT, PSB, Rede, Psol e PCdoB), mais Solidariedade o PV já fecharam questão contra a reforma. Em seguida, a proposta ainda teria de tramitar no Senado.

Desmonte dos serviços públicos

Além de determinar o fim da estabilidade dos servidores e abrir caminho para as privatizações, a PEC 32 pode representar o fim dos concursos públicos e uma redução salarial em até 25%. Cargos poderiam ser extintos, salários congelados, e não haveria mais paridade salarial para aposentadas e aposentados.

A PEC 32 também dá poder ao presidente da república de extinguir cargos, gratificações, ministérios, funções e transformar cargos vagos. Isso acaba abrindo brechas para a privatização ou levando a extinção dos serviços públicos, tirando da população serviços essenciais como saúde, educação, saneamento, cultura e fiscalização.

Outros pontos problemáticos da proposta são:

  • Retorno da possibilidade de terceirização ampla;

  • Possibilidade de contratação temporária por dez anos, aumentando a precarização trabalhista;

  • Possibilidade de se abrir processo administrativo contra o servidor com base em avaliações insatisfatórias;

  • Modificações nos critérios para demissão, baseadas em avaliações de desempenho que podem ser manipuladas de acordo com o interesse do governo ou superior da ocasião.

Em conversa com a Internacional de Serviços Públicos (ISP), o presidente da filiada Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB), João Domingos, se recusa a chamar a PEC de “reforma administrativa” e diz querer tirar o “carimbo” de que essa proposta só acaba prejudicando os servidores públicos. “Primeiro, eu quero dizer que quem defende e quer uma reforma administrativa somos nós os profissionais de serviços públicos, responsáveis pela gestão dos serviços públicos, mas uma que venha realmente resolver as necessidades de uma reforma administrativa”, complementa.

Segundo Domingos, o que os servidores querem para uma reforma administrativa de fato são: aprimoramento do serviço público, qualificação dos operadores dos serviços e profissionalização da gestão.

O que está acontecendo não é apenas um mecanismo fiscal, não tem nada a ver com reforma administrativa, mas é a imposição de um modelo de Estado.

“A gestão do governo atual é 100% político-partidária. Na contramão disso, precisamos sobretudo de uma reforma administrativa que venha oferecer mais serviços públicos, de melhor qualidade e equivalente minimamente à carga tributária paga pelo usuário, que proporcionalmente é a mais injusta do mundo”, comenta.

O presidente da CSPB ainda explica que a PEC 32 vai na contramão de qualquer parâmetro da reforma administrativa a partir do momento em que ela é um mecanismo de ajuste fiscal em plena pandemia, com número de desemprego e pobreza nas alturas. Tudo isso acaba com o que ainda resta dos serviços públicos. “Essa PEC é, por assim dizer, um chassi de um modelo de Estado, ou seja, o que está acontecendo não é apenas um mecanismo fiscal, não tem nada a ver com reforma administrativa, mas é a imposição de um modelo de Estado.”

Domingos cita três formas de combater a proposta:

  1. Combate político-ideológico: reconhecendo que estamos vivendo uma guerra de classe;

  1. Combate estratégico: aproveitando oportunidades que a PEC oferece de discutir modelos de Estado;

  1. Aproveitar o período de um ano para conscientizar a população, combatendo o modelo de Estado ultraliberal.

Impactos da PEC 32

Com sua possível aprovação, o Estado deixaria de ser o prestador, só chegando onde o mercado não enxergasse oportunidade de ter lucro, abrindo brecha para privatizações e concessões às empresas que visam o lucro ao invés do capital social e público. Domingos destaca que a população tem de entender o prejuízo que essas medidas causam. “Tudo será exercido pelo mercado, e caberá ao Estado que cobra uma das mais injustas cargas tributárias do mundo pegar essas cargas tributárias e remunerar o mercado.”

Uma das alegações do governo federal é que o Estado está "inchado" e que é preciso acabar com os “privilégios”. Para Domingos, o governo fez a PEC 32 com “um amontoado de erros técnicos crassos e grosseiros” e está respaldada por “falácias, mitos e mentiras”.

Nesse período com menos dinheiro, menos pessoal (...), nós ainda temos números fantásticos de ganho de produtividade

O Brasil tem o menor percentual de trabalhadores públicos da América Latina, somente 4%, ficando atrás do Paraguai, com 5%, aponta o presidente da CSPB. “Para a população brasileira receber a quantidade e a qualidade de serviços públicos demandados por essa população em relação à carga tributária, nós deveríamos contratar mais 10 milhões de servidores públicos das três esferas administrativas, ou seja, dobrar o número, e eles querem reduzir pela metade”, explica.

Outra mentira apontada é sobre a suposta ineficiência dos serviços públicos para a população. João Domingos desmente tal afirmação com dados do aumento de 500% nas matrículas em escolas públicas e de 600% em atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS). “Nesse período com menos dinheiro, menos pessoal – hoje nós temos menos servidores públicos do que duas décadas atrás, menos investimento, menos prestígio para o serviço público –, nós ainda temos números fantásticos de ganho de produtividade”, complementa. “Que ineficiência seria essa? Ao contrário, servidores públicos merecem medalha de eficiência e até de eficácia.”.

A luta contra a PEC 32

A luta para derrubar a proposta de reforma administrativa tem se baseado na unidade entre sindicatos e articulações com outras organizações através de realizações de audiências públicas com câmaras de vereadores e até discussões em associações de bairro, campos de futebol, igrejas de bairro e botecos. Como desde a campanha eleitoral o governo federal elegeu os movimentos sociais como inimigos, não houve conversa, portanto os sindicatos têm de apelar para estratégias próprias.

Em diversos países as reformas desse tipo, (...) não deram certo, sendo preciso inclusive reestatizar serviços.

“A luta está sendo baseada na grande unidade do movimento sindical, na interação do movimento sindical com o movimento social como um todo, levando a discussão para a sociedade, para o usuário dos serviços públicos e finalmente trabalhando, modificando, refinando a cada dia nossa estratégia, com base nas mudanças de estrutura que influenciam na correlação de força nossa e do governo no Congresso nacional”, explica Domingos.

Nesse contexto, o presidente da CSPB avalia que a ISP tem grande importância como um poder unificador de vários movimentos que lutam pelas causas mais nobres em favor do funcionalismo público e da população. “A importância da ISP é também destacar as experiências internacionais mostrando que em diversos países as reformas desse tipo, com desmonte do Estado e privatizações, não deram certo, sendo preciso inclusive reestatizar serviços.”

A ISP tem apoiado firmemente a luta contra a PEC 32, seja convocando para que as e os trabalhadores façam pressão junto aos parlamentares, seja pedindo apoio e solidariedade internacional e trazendo experiências que mostram como a precarização das relações de trabalho e as privatizações significaram a piora dos serviços públicos em diversas partes do mundo, resultando inclusive em mobilizações da população pela reestatização desses serviços.