Reformas para os cuidados de longa duração Guia para Sindicatos

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Reformas para os cuidados de longa duração
Guia para Sindicatos

Reformas para os cuidados de longa duração  Guia para Sindicatos

Este guia ajuda os sindicatos a compreender os principais indicadores para um sistema de cuidados de boa qualidade e os princípios para um trabalho digno no sector dos cuidados de longa duração, de modo a defender a reforma.

Table of contents

A PSI publicou um novo e extenso relatório independente, "Trabalho Digno e Sistemas de Cuidados de Longa Duração de Qualidade" escrito pela Dra. Sara Charlesworth - RMIT University, Dr. Ian Cunningham - University of Strathclyde, Dra. Tamara Daly - York University.

Um relatório independente identificou os princípios e indicadores chave relativos àquilo que contribui para a boa qualidade dos cuidados e para um trabalho digno no setor dos cuidados de longa duração (CLD). Estes princípios e indicadores baseiam-se numa tipologia centrada no pessoal trabalhador empregado em cuidados e nos regimes de migração em países selecionados do Norte Global e do Sul Global. Essa tipologia é sustentada por extensa pesquisa documental e por estudos de caso de países específicos como Canadá, Austrália, Chile, França, Índia, Escócia, Fiji e África do Sul.  

  • Para aceder ao relatório completo e às referências, clique aqui (apenas em inglês).

Para que serve este guia

Este relatório tem por finalidade servir como um recurso abrangente para os sindicatos, oferecendo ideias baseadas em evidências de como defender reformas práticas nos setores nacionais de cuidados de longa duração (CLD). O enfoque estende-se para além dos sistemas de cuidados de longa duração estabelecidos no Norte Global, uma vez que também abrange a situação em evolução dos serviços e sistemas de cuidados de longa duração no Sul Global.

O conteúdo não só fornece exemplos de modelos e reformas bem-sucedidos que apoiam os trabalhadores na prestação de cuidados de saúde prolongados responsáveis e de elevada qualidade, como também identifica oportunidades para a Public Services International (PSI) e os seus afiliados em campanhas, negociações e mensagens públicas.

O que são cuidados de longa duração?

O setor de CLD inclui serviços de cuidados tanto no domicílio quanto em residenciais de cuidados, envolvendo trabalhadores remunerados, bem como trabalho informal, familiar e não remunerado realizado por membros das famílias. E abrange serviços de cuidados a pessoas idosas, serviços de apoio a deficientes e serviços de saúde para doentes crónicos, com ênfase principal nos cuidados a pessoas idosas.

Os dois principais subsetores dos cuidados de saúde de longa duração para pessoas idosas são os cuidados residenciais ou em casas de repouso e os serviços formais de cuidados a domicílio. O relatório reconhece o papel fundamental dos "cuidados familiares" ou cuidados não remunerados, que são predominantemente prestados por mulheres. Apesar de serem a principal fonte de apoio a pessoas idosas em nível mundial, os cuidados familiares enfrentam desafios devido a alterações demográficas tais como a migração, o aumento da participação das mulheres na força de trabalho e a migração para o exterior. Em muitos países da OCDE, a mudança de cenário levou a um aumento dos serviços formais prestados pelo Estado e terceirizados para setores com e sem fins lucrativos.  

Princípios-chave para cuidados de boa qualidade

O relatório identifica seis princípios fundamentais que constituem a base sobre a qual se deve construir o trabalho digno e sistemas de cuidados prolongados de boa qualidade. 

Clique nos títulos para ver um resumo de cada princípio:

Princípio 1: Financiamento público que cubra os custos do atendimento em cuidados

  • A política e o financiamento em nível nacional e regional devem ser aprimorados a fim de eliminar a obtenção de lucros nos cuidados de saúde prolongados financiados pelo Estado. O financiamento público deve cobrir o custo total dos cuidados, baseando os serviços na necessidade e não na elegibilidade financeira. 

Princípio 2: Atendimento público ou sem fins lucrativos

  • A melhor forma de prestação de cuidados de saúde prolongados é através de serviços públicos diretos que empregam o pessoal trabalhador diretamente. O envolvimento do setor privado acarreta lucro excessivo, cuidados de má qualidade e, como se verificou durante a Covid-19, uma capacidade reduzida para lidar com situações de emergência. As taxas de mortalidade nas instalações de prestação de CLD com fins lucrativos foram significativamente mais elevadas do que nas suas congêneres do setor público e sem fins lucrativos devido à minimização das despesas com o pessoal trabalhador e com pessoas usuárias dos serviços. 

Princípio 3: Gestão pública

  • Os cuidados de saúde de longa duração são um bem público. A gestão pública exige que os governos atuem no interesse público para, de modo robusto, monitorar, avaliar e assegurar cuidado de boa qualidade e trabalho digno em nível sistêmico e operacional, independentemente do tipo de atendimento. Quando os cuidados de saúde prolongados são prestados diretamente por pessoal empregado pelo setor público, normalmente estão associados a resultados de alta qualidade. Quando os cuidados de saúde são terceirizados para instituições privadas com ou sem fins lucrativos, o governo deve garantir a existência de contratação efetiva a fim de monitorar o gasto de fundos públicos e o descumprimento por parte de prestadores desses serviços.  

Princípio 4: Transparência dos dados públicos e responsabilização

  • Para apoiar a gestão do sistema público, devem existir mecanismos de responsabilização pública pelo financiamento governamental. Os dados devem ser divulgados publicamente, inclusive os relacionados à conformidade com a regulamentação do sistema de cuidados de saúde, à força de trabalho, ao tipo de contratos de trabalho e ao desempenho de prestadores contratados. Para conseguir melhorias em nível de sistema e produzir resultados de alta qualidade para as pessoas beneficiárias dos cuidados, os prestadores de serviços têm de criar condições de trabalho decentes, publicar relatórios de desempenho e disponibilizar os dados para avaliações independentes. Os prestadores de serviços de cuidados de longa duração devem se pautar pela máxima transparência em suas operações e nos dados relativos aos resultados, uma vez que a terceirização de serviços para entidades com fins lucrativos levanta questões significativas relativamente à responsabilidade pelo uso de financiamento público. 

Princípio 5: Condições de trabalho dignas

  • Condições de trabalho dignas nos cuidados de longa duração incluem remuneração e previsão de horas de trabalho suficientes para proporcionar um salário digno que permita ao pessoal trabalhador usufruir de dignidade no trabalho, de recursos para si e para as suas famílias e participar plenamente na vida fora do trabalho remunerado. Nos cuidados prolongados, condições de trabalho dignas também incluem contratos de trabalho seguros e, quando assim desejado pelas pessoas cuidadoras, com acesso a emprego em tempo integral; pagamento por todas as horas trabalhadas, inclusive documentação relativa a deslocamentos entre clientes; acesso a férias pagas e a benefícios de aposentadoria; excelente formação; e acesso a carreiras profissionais relevantes e a condições de trabalho seguras. 

Princípio 6: Dignidade nos cuidados

  • Independentemente do contexto, a consistência dos cuidados – definida como a garantia de que o pessoal trabalhador de cuidados prolongados tenha tempo para conhecer a pessoa usuária do serviço e suas preferências e necessidades – é fundamental para a dignidade. A dignidade nos cuidados também depende do fato de os cuidados serem prestados por pessoal trabalhador bem treinado, qualificado e apoiado. Ser capaz de poder escolher os cuidados prestados e ter alguma flexibilidade quanto ao momento em que os cuidados serão recebidos também são questões da maior importância. 

Principais tendências do sector

Mercantilização, trabalho e emprego nos cuidados de longa duração 

Clique num tema abaixo para explorar as tendências emergentes no sector:

Mercantilização dos cuidados de saúde de longa duração

A mercantilização dos cuidados de saúde prolongados tem seguido uma trajetória semelhante, embora não idêntica, em uma série de países do Norte Global. As estratégias de mercantilização da prestação de cuidados de saúde prolongados foram influenciadas pelas ideias da Nova Gestão Pública (NPM, do inglês New Public Management). A NPM, tal como ilustrada particularmente nos estudos de caso australiano, canadense e escocês, incentiva a mercantilização e envolve a terceirização (esvaziamento) de serviços públicos e da contratação de pessoal, que deixam de ser prestados diretamente pelo Estado e passam às mãos de redes de prestadores privados (com fins lucrativos) e voluntários (sem fins lucrativos). A lógica por trás dessa terceirização é múltipla e inspirada pela ideologia da agenda da NPM, que inclui: uma suposta insustentabilidade financeira dos serviços prestados diretamente pelo Estado; o propósito de melhorar a qualidade dos serviços pela adoção de regras de mercado e pela atribuição do risco aos prestadores de serviços e sua força de trabalho; a introdução de técnicas de gestão e inovação do setor privado nos serviços públicos; o corte de custos e a busca de eficiência em um ambiente de concorrência; a proximidade de certos tipos de prestadores, por exemplo, organizações sem fins lucrativos, da clientela e das suas necessidades; o enfraquecimento do alcance regulatório dos sindicatos e da negociação coletiva; e a corrosão dos termos empregatícios e das condições de trabalho do pessoal do setor de cuidados empregados na linha de frente. 

 

Relações na cadeia de suprimento dos serviços públicos 

 

Sistemas mercantilizados de cuidados de saúde prolongados implicam uma dinâmica particular de poder nas relações entre, por um lado, prestadores de cuidados privados e os sem fins lucrativos e, por outro, o Estado. Os primeiros dependem do segundo em termos de recursos. Os serviços públicos diretamente prestados têm sido progressivamente "esvaziados" através de processos de terceirização pelos quais o Estado, além de prestador, se torna facilitador de cuidados de saúde prolongados prestados por terceiros. O Estado, tanto em nível central como regional e local, cria redes de prestadores privados e voluntários que ele próprio lidera e coordena. 

 

Muitas das relações entre o Estado e os prestadores de cuidados de saúde prolongados podem ser problemáticas. Casos como o da Escócia, do Canadá e da Austrália revelam que os financiamentos estatais raramente levam em conta o custo total dos cuidados ou pressões inflacionárias. Além disso, o financiamento está ligado a rigorosos indicadores-chave de desempenho (KPI, do inglês key performance indicators) que, de um ano para o outro, podem exigir eficiências e, em tempos de austeridade, cortes no financiamento. As organizações prestadoras de serviços são particularmente vulneráveis em relações em que têm um único financiador dominante, sem nenhum ou com acesso limitado a financiamentos alternativos. 

 

Em termos de segurança e sustentabilidade, a constante pressão por maior economia e ganhos de eficiência exercida pelos financiadores sobre as organizações prestadoras de serviços levou a que as organizações se retirassem, parcial ou totalmente, do mercado, devolvendo assim os serviços aos governos. A mercantilização desenvolveu-se através de uma combinação de NPM e valores neoliberais, mas também a partir de campanhas de direitos humanos do movimento de pessoas com deficiência. Aumentam os apelos por serviços que coloquem as aspirações e ambições de usuários e usuárias em primeiro lugar. A pessoa usuária do serviço é vista como uma consumidora expressando uma escolha individual, inclusive sobre o tipo (público, privado ou voluntário) de prestador de serviço, e até mesmo sobre a pessoa trabalhadora individualmente. Essa agenda conduz a decisões sobre o timing e o número exatos de horas de prestação do serviço.  

 

Estados, como os da Austrália, França e Escócia, vêm comercializando ainda mais os serviços de cuidados, introduzindo programas que promovem a individualização ou "personalização" dos cuidados, conhecidos como cash-for-care [em tradução livre, dinheiro para cuidados]. Neste caso, os Estados introduziram benefícios na forma de pagamentos que, em vez de irem diretamente para os prestadores voluntários e privados, são feitos a indivíduos ou beneficiário(a)s de cuidados, como se fossem orçamentos pessoais. Esses esquemas foram concebidos para dar às pessoas que recebem cuidados a possibilidade de fazerem escolhas em relação às suas vidas, em vez de serviços de "tamanho único" prestados por Estados ou prestadores.  

 

Gênero e subvalorização do cuidado 

 

A mercantilização também perpetua a subvalorização baseada no gênero do trabalho de prestação de cuidados, a divisão do trabalho em função de gênero e a naturalização das competências das mulheres na prestação de serviços de cuidados. Os empregos nos cuidados prolongados são mal pagos porque são majoritariamente ocupados por mulheres e porque o trabalho de cuidados está associado ao papel de gênero das mulheres, em particular das mães. Consequentemente, competências como o carinho e a compaixão são consideradas naturais e subvalorizadas. Os financiadores dos serviços de cuidados prolongados, tanto o Estado como órgãos do setor público, são cúmplices na subvalorização do trabalho das mulheres ao não estabelecerem custos que incluam a contabilização de competências associadas às características do trabalho. 

 

O uso da tecnologia em cuidados de longa duração 

 

Em qualquer discussão sobre mercantilização do CLD, é relevante destacar o papel das novas tecnologias nas medidas de redução de custos e de austeridade, bem como a subvalorização com base em gênero dos cuidados de saúde prolongados. Nos sistemas de cuidados mercantilizados, as tecnologias da informação e da comunicação (TIC) são caracterizadas como prioridades na redução de custos. Os gestores que prestam serviços públicos reconhecidamente vislumbram a tecnologia como uma solução que pode proporcionar ganhos de eficiência e economia de custos e ajudá-los a introduzir novas formas de controle que reduzam a autonomia do pessoal trabalhador. A urgência dos prestadores de cuidados de saúde prolongados em introduzir estas tecnologias acelerou-se em contextos que exigem economia de gastos. 

  

Em 2019, uma pesquisa realizada com diretores de serviços de assistência social do Reino Unido sobre cuidados de saúde prolongados para adultos em órgãos de financiamento público revelou que 96% deles consideravam a utilização das TIC importante para a redução de custos. De fato, as TICs eram e são vistas como fundamentais para que os governos locais possam manter serviços obrigatórios apesar das drásticas reduções inspiradas na austeridade em seus orçamentos (ADASS, 2019). 

 

A possibilidade de que o pessoal trabalhador do setor de cuidados prolongados seja afetado por mudanças em seu trabalho e por uma potencial degradação decorrente da introdução da tecnologia é significativa. A tecnologia é uma parte essencial das pressões que geram maior insegurança e intensificação do trabalho nos cuidados prolongados mercantilizados. 

A aplicação da tecnologia também tem impactos prejudiciais sobre quem busca cuidados, uma vez que essas pessoas, mais uma vez, têm que conviver com a diminuição de interações relacionais e face a face em favor de soluções tecnológicas, tais como comandos, sensores e robôs. A monitoração por meio de TICs do tempo despendido na residência de uma pessoa usuária do serviço diminui a autonomia do pessoal trabalhador de se envolverem nos aspectos sociais e relacionais associados ao tratamento de pessoas mais vulneráveis. 

 

Lucrar com os cuidados de longa duração através da financeirização 

 

Em estudos de caso conduzidos no Chile e na Índia, verificamos um crescente interesse das multinacionais nos sistemas de cuidados prolongados desenvolvidos nesses países. Esta é mais uma caraterística destes sistemas mercantilizados que contribui para práticas de emprego inaceitáveis: a exploração por grandes multinacionais privadas. Um estudo recente realizado pelo centro de estudos CICTAR e pelas federações sindicais Fédération Santé Action Sociale CGT e Fédération CFDT Santé-Sociaux (2022) revelou que a empresa Orpea tem, comprovadamente, sobrecarregado seus lares para pessoas idosas com grandes dívidas e elevados custos de aluguéis. Para tal, a Orpea vende os lares de pessoas idosas com lucro e, em seguida, os aluga de volta dos novos proprietários. Esta especulação imobiliária é efetuada por meio de uma complexa rede de 40 empresas subsidiárias estabelecidas em Luxemburgo. Não há nada de ilegal nestas transações, mas há apelos por uma maior transparência (CICTAR et al., 2022). A Orpea não é a única. Esta forma de financeirização é comum. Só o Reino Unido tem ativos de cuidados estimados em 245 bilhões de libras, com transações anuais de 1,5 bilhão de libras nos últimos cinco anos (CICTAR, 2023).  

 

A aceleração da mercantilização, que permite aos financiadores dominantes colocarem o corte de custos no centro das relações com os prestadores de serviços, que continua a subvalorizar o trabalho das mulheres em função do gênero, que incentiva a introdução de tecnologia centrada no controle de custos e que permite formas especulativas de financeirização por parte das multinacionais, levou a uma "corrida para o fundo" nos termos e condições de emprego. Nos últimos anos, assistiu-se ainda à introdução em alguns países do Norte Global, a exemplo de Escócia e Canadá, de fundos de austeridade, o que acelerou e exacerbou estas pressões.

Condições de trabalho

Segue um resumo das principais tendências em matéria de condições de trabalho. 

O declínio do cuidado familiar 

Existem também sobreposições entre o declínio do cuidado familiar e as tendências de mercantilização. Em nível mundial, as mulheres dedicam-se às três formas de trabalho familiar não remunerado (em cuidados), muito mais do que os homens, respondendo por cerca de 80% desse trabalho (OIT, 2019). A contribuição do trabalho de cuidados não remunerado para os cuidados de longa duração é muito mais pronunciada no Sul Global. Ao mesmo tempo, como revelam os estudos de caso, as mudanças demográficas e as tendências socioeconômicas e políticas vêm mostrando uma maior fluidez na dependência tradicional desse trabalho. Cada um dos casos do Sul Global revela como a industrialização, a urbanização, maiores oportunidades de educação, a mudança das tendências populacionais e a criação de cadeias globais de valor dos cuidados vêm diminuindo a dependência outrora existente do cuidado familiar. No entanto, à medida que estas mudanças se tornam mais pronunciadas, grandes montantes de despesas nesses casos (por exemplo, nas Fiji, na África do Sul e na Índia) seguem sendo alocados principalmente para serviços de saúde prestados para mães e crianças pequenas. No entanto, apesar do aumento na demanda, um exame minucioso da provisão de cuidados de saúde prolongados nos estudos de caso do Sul Global revela enormes lacunas na cobertura. 

Além disso, à medida que as formas de mercantilização se espalham a partir do Norte Global, o declínio dos cuidados familiares traz várias ameaças ao pessoal trabalhador e aos usuários e usuárias dos cuidados de longa duração no Sul Global. A primeira vem do crescimento das cadeias globais de valor dos cuidados que levam migrantes a substituir a força de trabalho local do Norte Global, no que é percebido como trabalho de cuidados desvalorizado. Os fluxos migratórios do Sul Global para o Norte levaram, por sua vez, à escassez de profissionais de saúde e de cuidados prolongados nos Estados do Sul Global, reduzindo ainda mais os recursos humanos de uma oferta já limitada.  

A segunda ameaça surge com o envelhecimento da população levantado nos estudos de caso do Sul Global. Esses casos revelam como as multinacionais começam a identificar novos mercados (por exemplo, na Índia e na África do Sul). Sem a devida regulamentação estatal e sem o compromisso de estruturar um sistema de cuidados de saúde prolongados, os Estados, o pessoal trabalhador e as pessoas beneficiárias de cuidados ficam vulneráveis às estratégias financeiras das multinacionais já familiares em países como a França, a Austrália e a Escócia. O crescimento de formas privadas de prestação de cuidados em países do Sul Global ameaça os esforços paralelos de sindicalização, uma vez que os estudos de caso indicam o que parece ser uma força de trabalho majoritariamente informal operando em circunstâncias semelhantes a trabalho não remunerado. O crescimento das atividades dos cuidados de saúde prolongados por parte de empresas multinacionais no Sul Global, inclusive práticas de financeirização, de extração de valor de transações imobiliárias, a criação de duas classes de sistemas de cuidados e a degradação das condições de trabalho, representará um enorme esforço adicional para os sindicatos em suas campanhas para regular o trabalho informal e não remunerado nos cuidados de saúde prolongados. 

 

Péssima qualidade de trabalho nos cuidados de longa duração 

Remuneração e condições de trabalho 

Uma série de estudos sobre a mercantilização dos cuidados de saúde prolongados sublinhou que, em geral, os salários são baixos e as condições de trabalho inadequadas em comparação com outras profissões e o trabalho do cuidado está entre as profissões mais mal pagas na maioria das economias. Um estudo de 2017 da OIT concluiu que, em geral, as pessoas trabalhando em cuidados prolongados recebem salários baixos e desfrutam de piores condições de trabalho e de menor seguridade social do que outras do setor de cuidados. Quando os empregos do setor de cuidados se tornam demasiado exigentes, as pessoas nele trabalhando mudam-se para setores igualmente mal remunerados do comércio varejista e da hotelaria, onde o salário pode ser ligeiramente melhor e/ou onde há menos responsabilidade. De acordo com a Eurofound (2020), na UE, as pessoas trabalhadoras dos cuidados prolongados com frequência recebem salários muito inferiores à média nacional, com os salários do setor privado sendo piores do que o dos prestadores públicos 

Nos países da OCDE, a rotação do pessoal dos cuidados prolongados é mais elevada do que a da mão de obra em geral.

Igualmente preocupante é a forma como a mercantilização conduziu a um enfraquecimento ainda maior das faixas de remuneração do emprego em comparação com as do setor público. A mercantilização conduziu à erosão de outros benefícios que eram comparáveis aos recebidos pelas pessoas trabalhadoras do setor público desempenhando funções equivalentes. Trata-se de benefícios como direito a pensão, auxílio-doença, férias, horas extraordinárias e outros pagamentos adicionais, por exemplo, por trabalho noturno e aos finais de semana. Há ainda, cada vez mais, relatos de que pessoas prestadoras de cuidados não recebem sequer o salário mínimo regulamentar. Estes pagamentos abaixo do mínimo passaram a ocorrer porque a concorrência de preços entre os prestadores de serviços subcontratados resultou em financiamento insuficiente para cobrir custos tais como tempo de deslocamento. O resultado disso é que o pessoal trabalhando em serviços comunitários de cuidados de saúde prolongados desloca-se sem remuneração entre visitas, implicando em que seu salário médio por hora seja inferior ao mínimo regulamentar. A tecnologia contribui para estas medidas de economia de custos, com as TIC sendo usadas para vigiar a força de trabalho, monitorando o tempo que profissionais do CLD despendem em cada visita a pessoas usuárias.  

Essas práticas inaceitáveis do Norte Global constituem lições claras para as/os ativistas das organizações afiliadas da ISP que se empenham em garantir que o status e as condições das pessoas trabalhadoras do setor de cuidados de saúde prolongados sejam formalizados e abrangidos pelas diretrizes relativas ao salário mínimo. O pessoal trabalhador de alguns serviços de cuidados prolongados também pode ser solicitado a contribuir para coisas tais como a compra de uniformes e até mesmo para taxas associadas a treinamento e qualificação profissional. A constante erosão das condições de trabalho no serviço mercantilizado de cuidados prolongados para adultos prenuncia o fim da relação de trabalho normal e que tudo o que se oferece às pessoas trabalhadoras é um salário base e alguns compromissos em matéria de nomeações, formação e saúde e segurança. 

Insegurança 

O trabalho e o emprego em sistemas mercantilizados de cuidados de saúde prolongados podem também ser inseguros. A incerteza de financiamento pode advir da alteração de prioridades governamentais e da contenção fiscal. A austeridade na renovação do financiamento que os prestadores privados e sem fins lucrativos enfrentam leva, em muitos países, a taxas de contratos temporários superiores à média (por exemplo, na Escócia) ou a grupos de trabalhadores e trabalhadoras particularmente vulneráveis sendo submetidos a contratos precários em momentos específicos do ciclo de financiamento (por exemplo, no Chile). Nos países da OCDE, o emprego não regulamentado e temporário é quase duas vezes mais elevado entre as pessoas trabalhando com cuidados prolongados do que no setor da saúde como um todo. Dados da Europa revelam que há mais trabalhadores e trabalhadoras no setor de cuidados prolongados procurando outro emprego do que no setor da saúde como um todo e que as razões para tal estão relacionadas com a insegurança e a insatisfação no emprego (OCDE, 2022). 

Quase dois terços dos países da OCDE identificaram a retenção dos trabalhadores dos cuidados prolongados como um grande desafio político.

A individualização ou a personalização dos cuidados de saúde prolongados acrescenta outras dimensões à insegurança. Essas abordagens dos cuidados intensificam as pressões do mercado, uma vez que as pessoas beneficiárias dos serviços são vistas como "clientes" com poder de escolha, inclusive na seleção de quem prestará tais serviços. Mais uma vez, isso acrescenta um elemento de insegurança à vida profissional do pessoal trabalhador, uma vez que este pode ser transferido ou mesmo perder o emprego se não atender exatamente às necessidades das pessoas usuárias dos serviços. Há exemplos de trabalhadoras que vêm a sua segurança no emprego ameaçada em circunstâncias em que pessoas usuárias dos serviços solicitam uma mudança de prestador se este não corresponder idealmente às suas necessidades. 

Intensificação do trabalho 

A intensificação do trabalho surge de várias formas nos cuidados prolongados. A falta de financiamento adequado do tempo de deslocamento e a tendência das pessoas trabalhadoras de ficarem até terminarem o trabalho, ultrapassando assim os limites de tempo prescritos, significa que estão realizando trabalho não remunerado. Tal como nos casos australiano, canadense e escocês, o aumento da procura por serviços, associado ao subfinanciamento e à falta de pessoal, contribui para intensificar o trabalho da força de trabalho. Estudos mais antigos sobre os cuidados de saúde prolongados mostram que a falta de pessoal significava que era comum que as trabalhadoras trabalhassem durante os intervalos e fizessem horas adicionais sem remuneração. Outra prática comum decorria de insuficiência do quadro de pessoal e de faltas ao trabalho, o que significava que o pessoal se via forçado a fazer turnos duplos. Mais uma vez, esses sacrifícios ou doações de trabalho não remunerado eram vistos como parte de uma elasticidade infinita da força de trabalho, majoritariamente feminina, para cuidar. Sacrifícios, rotulados de "altruísmo obrigatório", eram feitos em prol das pessoas usuárias do serviço e baseados em pressupostos de gênero naturalizados de que as mulheres realizam trabalho não remunerado. 

A intensificação do trabalho em decorrência de alta rotatividade ou absentismo também tem custos em termos de qualidade e de bem-estar do pessoal e das pessoas usuárias dos serviços. No primeiro caso, os estudos revelaram que pessoas trabalhando muitas horas a mais podem sofrer de esgotamento (burnout) e estresse, com impacto na sua saúde mental e física e ocasionando ausências ao trabalho que pressionam ainda mais um serviço já com falta de pessoal. A saúde física também pode ser comprometida devido aos efeitos da intensificação do trabalho e da fadiga que o acompanha em serviços onde há comportamentos desafiadores e onde lapsos de concentração podem levar a agressões físicas ao pessoal. Empregos altamente exigentes e exposição a fatores de saúde física e mental redundam em baixa satisfação no trabalho e são vistos como uma das principais causas das baixas taxas de retenção da força de trabalho dos cuidados de saúde prolongados (OCDE, 2022). 

 

Baixa qualidade do apoio, treinamento e capacitação 

A supervisão do pessoal fica comprometida nesses ambientes mercantilizados. Uma menor remuneração significa que o tempo dedicado a interações diretas e formais, presenciais (ou digitais) entre o pessoal da linha da frente e seus supervisores/gestores é reduzido. Uma supervisão regular e adequada é vista como um dos elementos-chave para dar ao pessoal trabalhador o apoio de que necessitam para trabalhar em ambientes desafiadores. No entanto, sistemas mercantilizados e a constante pressão sobre os custos limitam o financiamento do tempo necessário para que o pessoal trabalhador e seus supervisores se reúnam para participar em atividades de supervisão. Essa subvalorização da supervisão e a consequente carência em termos de apoio têm-se repetido na Austrália. O estudo identificou o fato de as organizações terem menos gestores e gestoras de linha e, para aqueles que permanecem terem cada vez mais responsabilidades de controle, o que significa menos tempo para dedicar à supervisão. De modo geral, o acesso limitado à capacitação em supervisão e outras áreas significa que muitos trabalhadores e trabalhadoras em sistemas de cuidados mercantilizados operam sem plena competência para lidar com situações perigosas e emergências com clientes. 

A fragmentação do horário de trabalho

A organização do horário de trabalho é um componente fundamental dos esforços de financiadores e gestores para reduzir custos trabalhistas nos cuidados de saúde prolongados. Tal como referido na seção anterior, a aplicação das TIC pode ser uma ferramenta para as organizações monitorarem e controlarem horários de trabalho. Além disso, em sistemas de cuidados mercantilizados, a forma como o tempo é administrado, através da introdução de formas flexíveis de contratos e o estabelecimento de turnos, contribui ainda mais para a redução de custos e para a degradação do trabalho. O trabalho em tempo parcial é considerável na força de trabalho dos cuidados prolongados, sendo duas vezes superior à taxa média da economia em geral. Por exemplo, 45% do pessoal trabalhador de cuidados prolongados nos países da OCDE trabalham meio período. Na UE, o pessoal de cuidados prolongados cumpre turnos rotativos, com relatos de que sentem que não têm voz sobre seu horário de trabalho e que, muitas vezes, são avisados em cima da hora de que devem assumir turnos em horas não sociais (Eurofound, 2020). A tendência dos financiadores dos serviços públicos de pagarem ao pessoal trabalhador apenas o tempo efetivamente despendido na prestação de cuidados levou à introdução de formas precárias de contratação. Essas pressões no sentido de uma maior flexibilidade visando redução de custos são intensificadas nas abordagens individualizadas e personalizadas da prestação de cuidados. A personalização significa que as preferências do "cliente" relativamente ao momento em que os serviços devem ser prestados estão no centro do modelo de cuidados e desempenham um papel cada vez mais importante na organização do horário de trabalho. 

 

Contratos de curta duração, de jornada parcial, de substituição e intermitentes (“zero horas”) podem proliferar nesse tipo de ambiente mercantilizado. O recurso crescente a essas formas de contratação para satisfazer exigências de flexibilidade e de redução de custos dos financiadores e de usuária(o)s de serviços significa que a taxa de remuneração por hora pela qual uma pessoa trabalhadora é contratada pode ter impacto limitado no tocante à pessoa trabalhadora receber ou não um salário digno com o qual possa sobreviver. É o número de horas que importa e esses acertos contratuais podem fazer com que as pessoas trabalhadoras tenham "fome de horas". Jornadas parciais de trabalho também estão associadas à "pobreza de horas". Uma parte do pessoal trabalhador de cuidados prolongados na UE (30% nos cuidados prolongados fora de instituições de CLD, 20% nos cuidados prolongados em instituições de CLD) relata que aceita contratos de jornadas parciais porque não há disponibilidade de trabalho em tempo integral (Eurofound, 2020). 

 

A introdução de novas formas de trabalho de plataforma em cuidados 

A organização do trabalho de prestação de cuidados pode agora ser realizada através de plataformas digitais, onde usuários e usuárias de serviços selecionam pessoas dentre um conjunto de cuidadores e cuidadoras independentes e informais. A Austrália é o país onde há maior crescimento dessas formas de serviço informal e de plataforma. A aplicação dessa tecnologia significa que as plataformas digitais permitem que os empregadores atuem como uma interface eletrônica entre o pessoal trabalhador e as pessoas beneficiárias de cuidados. Nesses sistemas mercantilizados, as pessoas empregadas enfrentam riscos crescentes em termos de custos e de padrões de turnos fragmentados. O trabalho é individualizado através do deslocamento dos cuidados de um contexto de instituição para casas em sua maioria particulares, causando isolamento entre as pessoas trabalhadoras. O rendimento do conjunto de pessoas trabalhadoras empregadas nessas funções fica comprometido, uma vez que as entidades financiadoras não financiam adequadamente os pacotes de cuidados, o que leva a que pessoas usuárias desses serviços não consigam arcar com aumentos salariais. Essas formas de trabalho imitam muitos dos problemas enfrentados por outras formas precárias de trabalho, quais sejam, cancelamentos de última hora ou turnos curtos com deslocamentos longos (e, portanto, mais caros). A organização dos turnos do pessoal trabalhador é cada vez mais feita através de aplicativos telefônicos, o que pode significar mudanças aleatórias nos padrões de turnos, refletindo uma mudança para o trabalho sob demanda, ligado a plataformas. 

Trabalho migrante

Para compreender os níveis de vulnerabilidade enfrentados por diferentes grupos da força de trabalho prestadora de serviços de cuidados, devemos direcionar nossa atenção para a situação da mão de obra migrante. Os cuidados prestados por trabalhadoras e trabalhadores migrantes preenchem carências nos sistemas de cuidados prolongados dos países mais ricos. Mais uma vez, as mulheres são a maioria dessa mão de obra migrante. A maioria das pessoas migra por razões financeiras ou devido a más condições de trabalho ou ainda à incapacidade de encontrar um emprego em seu país de origem. Tal como nos estudos de caso da Índia e das Fiji, as pessoas migrantes complementam em grande medida o trabalho remunerado e não remunerado em países desenvolvidos de alta renda a fim de compensar a escassez de mão de obra nacional ocasionada pela subvalorização do trabalho de prestação de cuidados. 

Trabalhadoras e trabalhadores migrantes caracterizam-se por múltiplas formas de carência. Há riscos de tráfico de seres humanos e de abusos, bem como desafios para os sistemas de cuidados prolongados dos países de origem em termos de criação ou agravamento da escassez de profissionais dessa área. As pressões nos países de origem aumentarão à medida que as suas próprias populações começarem a envelhecer e a demandar elas próprias esses serviços nas próximas décadas. Para além das desvantagens relacionadas à questão de gênero, as pessoas trabalhadoras migrantes enfrentam discriminação racial, étnica e de nacionalidade. Elas podem pertencer a uma classe economicamente desfavorecida e seu status de imigrante pode impedi-las de ter acesso a direitos laborais, sociais, de seguridade social e políticos específicos do país em que se instalam. 

Os estudos de caso nas Fiji e na Índia revelam como os chamados países de origem também sofrem desvantagens nessas "cadeias de valor dos cuidados". Em particular, embora países como a Índia possam beneficiar-se de remessas enviadas por trabalhadoras e trabalhadores do setor de cuidados de longa duração para as suas famílias na Índia, esses fluxos migratórios acarretam uma escassez de mão de obra nos países de origem. 

Condições de trabalho inaceitáveis e baixa qualidade dos cuidados

O pagamento de salários mais baixos e a insegurança enfrentada pelo pessoal provedor de cuidados em sistemas mercantilizados representam uma falsa economia, uma vez que muitos serviços sofrem de rotatividade crônica e de escassez de mão de obra, o que gera um impacto nos orçamentos do setor público em ciclos perpétuos de recrutamento, contratação e formação. Nos serviços personalizados, os preços baixos ou a aplicação paralela de medidas de austeridade têm inúmeras implicações para a qualidade dos cuidados. O pessoal trabalhador é, com frequência, incapaz de prestar os tipos de serviços esperados pelos defensores de direitos humanos e das pessoas com deficiência nos regimes que provêm benefícios do tipo auxílio-cuidador (cash-for-care). 

 

A relação entre falta de pessoal e a qualidade dos serviços é profunda. Por exemplo, durante os períodos de confinamento no auge da pandemia de Covid-19, taxas mais altas de pessoal contratado nas unidades de cuidados prolongados redundaram em menos mortes. Isso deveu-se ao fato de o pessoal trabalhador ter de se deslocar menos entre as pessoas beneficiárias dos cuidados, reduzindo assim o risco de infecção. Entretanto, durante a pandemia, os baixos salários e o difícil acesso a outros benefícios teriam contribuído para o aumento de infecções entre pessoas vulneráveis. No Reino Unido, por exemplo, entre as pessoas trabalhadoras com baixos salários e contratos precários, a transmissão do vírus foi propagada por pessoas empregadas que trabalhavam, sobretudo, para prestadores privados, mas não comunicavam a infecção ou eram assintomáticas. Essa omissão estava ligada ao fato de o pessoal trabalhador não ter direito a receber auxílio-doença. Ao longo dos anos, a economia conseguida pelos prestadores privados para gerar lucros incluiu cortes nos benefícios por afastamento por doença. Em muitos casos, o pessoal prestador de cuidados pode ter vários empregos para poder fazer face às suas despesas. Mais uma vez, durante a Covid-19, isso implicou em que o pessoal trabalhador tenha transmitido o vírus a pessoas vulneráveis porque se deslocava entre várias instituições/casas de repouso. 

Covid-19 e cuidados de longa duração

A crise da Covid-19 levantou questões significativas para os cuidados de saúde prolongados em todo o mundo, uma vez que o subfinanciamento histórico até então traduzia-se em sistemas nacionais despreparados para responder a problemas relacionados à pandemia, a exemplo de adoção de medidas rigorosas de prevenção e controle de infecções, absorção dos custos de EPI (equipamentos de proteção individual), necessidades de formação do pessoal e gestão de ausências de pessoal por doença. A maioria das mortes por Covid-19 foi registrada entre pessoas idosas, sendo 93% entre as pessoas com 60/65 anos ou mais e 58% entre as pessoas com 80/85 anos (OCDE, 2021a). 

 

Embora a vulnerabilidade da população idosa explique em parte essas mortes, tornou-se cada vez mais evidente que o local da prestação de cuidados foi o fator que mais contribui para tais mortes. Instalações superlotadas e com alta densidade de ocupação, e com ocupação compartilhada, foram as características comuns dos lares para pessoas idosas oferecendo cuidados de longa duração que apresentaram as mais altas taxas de mortalidade. Associado a isso havia instrumentos de baixa qualidade, já que o mesmo estudo concluiu que, no início da pandemia, apenas metade dos países tinha diretrizes em vigor para o controle de infecções (OCDE, 2021a). 

 

A pandemia teve um impacto significativo no regime de emprego. Os estudiosos atribuem uma parte significativa da culpa pelo elevado número de mortes entre as pessoas em CLD à subvalorização dos cuidados e da sua força de trabalho. A baixa prioridade dada aos cuidados de saúde e à sua força de trabalho foi ilustrada pelos atrasos na distribuição de EPI e na realização de testes do pessoal nas fases iniciais da pandemia. Em países como a Colômbia e a República Checa, o pessoal trabalhador teve de contribuir para a compra de seus próprios EPI (OCDE, 2021). 

 

Relação pessoal/pessoas atendidas  

 

Os déficits de financiamento registrados pela maioria dos sistemas de cuidados de saúde prolongados traduziram-se em recursos humanos insuficientes na linha da frente. Alguns estudos concluíram que o risco de morte por Covid foi superior à média em instituições com fins lucrativos, o que está associado a relações pessoal/pessoas atendidas particularmente baixas e a projetos mais antigos dessas instalações. Além disso, o treinamento de pessoal para a detecção e o isolamento de casos de Covid demorou a ser implementado em alguns estabelecimentos de cuidados prolongados. 

 

Não surpreende, portanto, que quase todos os países da OCDE tenham adotado medidas para recrutar pessoal do setor de cuidados prolongados a fim de solucionar as referidas carências de pessoal. Essas medidas incluíram a concessão de subsídios às instituições de cuidados prolongados para cobrir custos de recrutamento, inclusive esforços para recrutar pessoal aposentado, desempregados ou estudantes. Além disso, houve um aumento no pagamento de bonificações para recompensar pessoas trabalhadoras que atuaram em situações de significativa pressão. Cerca de 40% dos países da OCDE concederam bonificações pontuais a seu pessoal de saúde por serviços excepcionais. Um pequeno número de países melhorou os salários de forma permanente (Alemanha, República Checa, Coreia do Sul e França). Outras medidas, relacionadas ao regime de migração, incluíram extensões temporárias de vistos para pessoal trabalhador estrangeiro do setor de cuidados prolongados. Apenas a Colômbia, a Grécia e a Letônia não tomaram medidas específicas (OCDE, 2021a). 

 

Faltas por doença 

 

Uma das razões para a propagação do vírus através do deslocamento do pessoal de saúde foi o fato de muitos terem mais do que um emprego. Nos países da OCDE, 45% do pessoal de cuidados prolongados tem jornadas parciais e muitos têm vários empregos para ganhar a vida decentemente. Em comparação com a era pré-pandêmica, o pessoal trabalhador de cuidados prolongados mostrou-se mais propenso a afastar-se por doença do que o pessoal de saúde não ligado a cuidados de longa duração; e a registrar níveis de doença mais elevados. As faltas ao trabalho tornaram difícil garantir que os serviços de CLD dispusessem dos recursos adequados ou dos níveis de especialização requeridos. O pessoal que permaneceu trabalhando enfrentou cargas maiores de trabalho e baixas relações pessoal/atendida(o)s, o que aumentou ainda mais a circulação de trabalhadora(e)s e, consequentemente, as infecções no setor de cuidados de saúde de longa duração (OCDE, 2021a). 

 

Auxílios-doença baixos ou inexistentes geram um custo financeiro significativo para o pessoal empregado e foram a razão para que muitas das pessoas trabalhando em cuidados de longa duração seguissem trabalhando mesmo quando infectadas pelo vírus da Covid-19 (OECD, 2021a).  

Se infectados, a vulnerabilidade é acentuada entre o pessoal trabalhador com contratos intermitentes. Seu regime contratual resultou em que estivessem entre aqueles sem direito a receber qualquer forma de benefício por motivo de doença. No Reino Unido, mesmo quando há auxílio-doença, muitas pessoas trabalhadoras, em especial aquelas empregadas em instalações particulares de cuidados prolongados, recebem apenas o benefício do Statutory Sick Pay, um dos auxílios-doença mais baixos entre os países do Norte Global. Essas questões têm merecido a atenção de organizações (por exemplo, a OCDE) e de sindicatos, bem como de acadêmicos (Elsen, 2020), que apontam a necessidade de que a gestão do absentismo e auxílios-doença estruturais reapareçam nas agendas das políticas e de negociação dos sindicatos. 

 

Na sequência da Covid-19, afiliadas da ISP apontaram para a campanha da ISP no Sul da Ásia a favor do pessoal trabalhador comunitário da saúde no que se refere a melhores condições de saúde e equipamentos de proteção individual. Como parte dessa campanha, utilizaram a Convenção C149 da OIT sobre Pessoal de Enfermagem, que exige que os Estados que a ratificam se comprometam com a educação e a formação de pessoal qualificado em enfermagem e com a melhoria das condições de emprego e de trabalho, incluindo perspectivas de carreira e remuneração. Em nível regional, a ISP vem promovendo a ratificação dessa Convenção da OIT e tem estratégias para as suas campanhas. 

Os trabalhadores migrantes ficaram vulneráveis durante a Covid-19 assim que os países rapidamente fecharam suas fronteiras, resultando em isolamento de suas famílias (OMS, 2020). No entanto, como se pode ver nos estudos de caso individuais, os regimes de cuidados prolongados nos países do Norte Global foram afetados pela Covid-19 e por outros choques externos, e hoje dependem mais fortemente de pessoal trabalhador migrante. Isso levanta questões relacionadas às condições de trabalho e aos direitos dessas pessoas trabalhadoras. 

 

No futuro, as questões de escassez de pessoal, condições de trabalho e conscientização e observância das normas de saúde e segurança no trabalho nos cuidados de saúde prolongados tendem a ser consideradas prioritárias. Pelo menos 30 países desenvolveram políticas para melhorar o acesso aos EPI e 24 deram prioridade à realização de testes em residentes e no pessoal trabalhador de lares de pessoas idosas. Há políticas para aumentar o número de pessoas trabalhadoras em pelo menos 26 países da OCDE, políticas que também incluem financiamento para a contratação de mais pessoal e de estudantes. Há também uma maior ênfase em higiene, que inclui o treinamento do pessoal (OCDE, 2021a).  

 

Considerando que a Covid-19 permanece sendo uma ameaça ativa, os militantes nos locais de trabalho e as afiliadas da ISP têm de investigar a forma como as organizações estão administrando seus auxílios-doença e a assiduidade no local de trabalho. É necessário centrar a atenção nas políticas de absentismo por doença devido à constatação de que as recentes abordagens da gestão da falta de assiduidade podem ser coercivas e punitivas, centrando-se apenas nas faltas não legítimas. Essas culturas do absentismo no local de trabalho já fizeram com trabalhadores e trabalhadoras comparecessem ao trabalho ainda que doentes, um comportamento que é preocupante durante uma crise de saúde. 

Baixos níveis de sindicalização

A existência e a representatividade das organizações da classe trabalhadora que protegem trabalhadores e trabalhadoras do setor de cuidados, bem como os mecanismos de diálogo social, incluindo a negociação coletiva, desempenham um papel importante não só na determinação do salário e das condições de trabalho de trabalhadores e trabalhadoras do setor dos cuidados (OIT, 2018), mas também nas campanhas por uma melhor provisão de cuidados prolongados. 

 

Em sistemas de cuidados mercantilizados, a influência dos sindicatos é limitada, uma vez que o emprego é terceirizado para áreas onde a negociação coletiva tem fraca presença em comparação com o emprego direto no setor público. Tradicionalmente, os prestadores de cuidados de saúde prolongados do setor privado e do setor voluntário não são sindicalizados. Os valores antissindicais resultam do receio de que atividades como as greves e outras formas de ação possam prejudicar os serviços e a missão, ou a geração de lucros no caso dos prestadores privados. Além disso, há problemas em mobilizar a mão de obra dos cuidados de saúde prolongados em organizações privadas e voluntárias para aderir a sindicatos. Isso deve-se à ausência de tradição de adesão aos sindicatos, dado que o número de organizadores sindicais é bastante reduzido em comparação com outros setores. Não existe "uma porta de fábrica" ou, no setor público, uma escola, um hospital ou escritórios administrativos onde trabalhadores e trabalhadoras possam participar de forma coletiva. O pessoal trabalhador dos cuidados prolongados trabalha em regime de tempo parcial, em turnos fragmentados, por vezes só, e na comunidade ou em casa das pessoas, sendo, assim, difíceis de contatar. Esse pessoal tem uma tradição limitada de sindicalização em suas fileiras e, por isso, mostra-se incerto quanto ao que o movimento lhes pode oferecer. Existe também uma certa percepção de que o pessoal trabalhador de cuidados prolongados teme os sindicatos devido ao impacto que greves e outras perturbações podem acarretar para as pessoas usuárias dos serviços. 

 

Nos casos em que os sindicatos estão presentes em organizações prestadoras de serviços privados e sem fins lucrativos, o efeito da cadeia de suprimento e da dependência de recursos torna as perspectivas de uma efetiva negociação coletiva bastante limitadas. Especificamente, os acordos de financiamento abaixo da inflação oferecidos pelos governos aos prestadores tornam muito improvável a perspectiva de que a negociação coletiva dos salários nos prestadores subcontratados acompanhe as condições dos trabalhadores do setor público. 

 

Essa limitação da negociação coletiva deve-se a, pelo menos, duas razões: 

  • Em primeiro lugar, ao contrário do setor público, a negociação coletiva, de modo geral, é feita em nível de empresa e não está sujeita a acordos nacionais. 

  • Em segundo lugar, em nível da empresa, o Estado atua como "terceiro empregador", determinando o acordo de financiamento que, de certo modo, determinará os acordos salariais, embora sem ter qualquer envolvimento direto nas negociações. Os sindicatos em acordos de negociação descentralizados não têm, portanto, o poder de responsabilizar ou negociar com o(s) órgão(s) estatal(is) que detém(êm) as chaves do cofre. Isso torna difícil para os sindicatos atribuírem a culpa por baixos aumentos salariais ao empregador imediato e mobilizarem uma ação coletiva contra este. 

 

A individualização e a personalização também têm implicações para a negociação coletiva e a sindicalização no setor. 

 

Os estudos de caso destacam a forma como as abordagens à negociação coletiva podem oferecer proteção aquelas pessoas trabalhadoras de cuidados prolongados difíceis de alcançar. Na França e na Austrália, por exemplo, os acordos coletivos setoriais negociados pelos sindicatos beneficiam pessoas trabalhadoras dos cuidados prolongados mesmo que não sindicalizadas. Além disso, a Escócia está atualmente buscando uma política de construção de negociações coletivas setoriais em seu setor de cuidados prolongados. No Chile, os sindicatos vêm incluindo os direitos de trabalhadores e trabalhadoras em suas campanhas mais amplas relacionadas com a mudança constitucional e a criação de um sistema de cuidados prolongados baseado em direitos. 

Os estudos de caso apontam para a importância crucial de as organizações afiliadas da ISP disporem de recursos para perseguirem as agendas acima, inclusive inteligência de mercado. Isso inclui que países do Norte Global, como a França, a Austrália e a Escócia, tenham capacidade de dar maior transparência às atividades das multinacionais. O caso da Índia, no entanto, realça a necessidade de os sindicatos terem acesso a recursos que lhes forneçam inteligência mais básica, por exemplo, sobre o tipo de prestador e sobre como organizar o trabalho e o emprego nos cuidados prolongados. Para além disso, o caso indiano revela como os sindicatos do Sul Global precisam de inteligência básica sobre o mercado de trabalho no que diz respeito à dimensão e à composição demográfica da força de trabalho dos cuidados prolongados, bem como ao grau de formalidade e informalidade nas relações de trabalho.

Posicionamento estratégico por parte dos sindicatos é crucial, assim como a atual defesa por parte dos sindicatos pela gestão dos cuidados de saúde prolongados pelo setor público. Na França, a exposição de preços extorsivos praticados contra os cofres públicos por parte de prestadores com fins lucrativos como a Orpea, resultando em condições terríveis para pessoas idosas vulneráveis, em formas de trabalho inaceitáveis para o pessoal trabalhador dos cuidados prolongados e na falta de um número adequado de pessoas trabalhadoras preparadas para trabalhar no setor de CLD, tem-se mostrado crucial nesse enfrentamento. A central sindical CFDT também defendeu de forma convincente uma maior consciencialização comunitária e política do valor socioeconômico dos cuidados prestados pelo pessoal de cuidados prolongados, argumentando que o financiamento do setor dos cuidados prolongados, inclusive através de pessoal adicional, profissionalização, reconhecimento de competências e melhor remuneração, deve ser visto como um investimento no cuidado digno de pessoas idosas dependentes (CFDT, 2019). 

Lições foram aprendidas com a crise da Covid-19 que podem permear as campanhas de sindicalização e as agendas de negociação no setor dos cuidados de saúde prolongados. Tais lições incluem: 

 

Uma maior relação pessoal/pessoas usuárias está associada a menos infecções e mortes; 

A redução da movimentação do pessoal (através de relações pessoal/pessoas usuárias mais elevadas) reduz a infeção pelo vírus; 

A escassez de pessoal só pode ser resolvida através de um melhor recrutamento e de uma melhor qualidade do emprego, sobretudo melhores salários e condições. 

Iniciar melhorias salariais com a consolidação dos pagamentos de bonificações feitos no pico da pandemia. 

Desenvolvimento de normas de segurança e treinamento adequado do pessoal, bem como monitoramento e fiscalização. 

A saúde mental e o bem-estar do pessoal devem ser uma prioridade, inclusive com treinamento de gestores em matéria de bem-estar psicológico e físico. 

Reconhecimento da incerteza enfrentada por trabalhadores e trabalhadoras sofrendo de Covid-19 prolongada (OCDE, 2020; OCDE, 2021b). 

Principais desafios à organização

Abordagens para que os sindicatos conquistem trabalho decente e CLD de qualidade 

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Negociação coletiva no setor público

Várias questões contextuais e setoriais mais amplas tornarão a sindicalização no setor de cuidados de longa duração mais difícil para os sindicatos nos próximos anos, dentre elas ataques à capacidade de organização dos sindicatos. Os sindicatos vêm sendo pressionados há várias décadas em termos da sua capacidade de organização e proteção de seus associados e associadas. O leque de fatores que influenciaram essa maior vulnerabilidade inclui o contexto econômico e político e as mudanças no mercado de trabalho. Os sindicatos do setor público têm sido tradicionalmente considerados mais resilientes no que respeita a manutenção de sua posição negocial, filiação, cobertura e capacidade de organização. 

No entanto, os sindicatos do setor público enfrentam problemas na organização dos cuidados prolongados e na representação do pessoal trabalhador. Em primeiro lugar, não ficaram imunes às forças que levaram a uma certa diminuição de sua influência e força em muitos países. A crise financeira global está na origem de muitas das políticas econômicas neoliberais que minaram a força dos sindicatos do setor público nos últimos dez anos. A crise financeira mundial e as políticas de austeridade dela resultantes constituem um ponto de convergência a partir do qual os governos consolidaram ainda mais a ideologia do domínio do mercado livre sobre a sociedade e suas principais formas de resistência – os sindicatos e a negociação coletiva. Uma tendência comum nos Estados nacionais tem sido identificar a crise financeira global como uma crise da dívida pública, culpando os sindicatos e seus quadros (especialmente no setor público) pela crise. 

Essa retórica conduziu a uma série de reformas das políticas públicas relativas à negociação coletiva no setor público e à segurança sindical, destinadas a reforçar as políticas de austeridade deflacionistas. Na UE, por exemplo, a cobertura da negociação coletiva, ou seja, a proporção de trabalhadores e trabalhadoras cujos termos e condições de trabalho são determinados por negociações coletivas, diminuiu como resultado da perda de postos de trabalho e de várias reformas.  

Além disso, os países da UE têm sido pressionados a moderar as reivindicações salariais e a adotar formas de negociação de concessões, ou seja, sindicatos aceitando uma diminuição dos termos e condições, em muitos casos de modo temporário, em troca de segurança no emprego. As pressões acima também foram evidentes no âmbito em que grande parte dos cuidados de saúde prolongados é prestada, ou seja, em nível da administração local em toda a UE. Os Estados nacionais impuseram cortes de austeridade a esse nível de governança. 

Também nos Estados Unidos da América, os ataques aos sindicatos se seguiram à crise financeira mundial, com a hostilidade política de longa data contra o movimento ganhando maior ímpeto nos EUA e no Canadá (um país que não sofreu o mesmo grau de problemas financeiros que o primeiro ou a UE). A crise financeira mundial abriu oportunidades para os conservadores defenderem disciplina fiscal, redução de pessoal e privatização de ativos públicos, uma vez que a culpa pela crise foi transferida para os sindicatos e seus/suas filiados(as) no setor público. Em ambos os países, as pensões e os salários foram atacados e os sindicatos enfrentaram pressões em nível estatal ou provincial pela eliminação do direito de negociação em áreas específicas, como pensões e benefícios de saúde, bem como limitações aos aumentos salariais. Esses ataques aos sindicatos e a seus quadros foram também predominantemente de gênero, ou seja, recaíram sobre profissões em sua maioria ocupadas por mulheres, incluindo a prestação de cuidados a pessoas idosas. 

Concorrência pelos recursos

Em primeiro lugar, mesmo nos casos em que os sindicatos são tradicionalmente mais fortes e/ou têm um histórico de organização no setor público, o seu alcance regulatório e, por conseguinte, a sua capacidade de influenciar o pessoal trabalhador dos serviços públicos em cuidados de saúde prolongados é mais difícil. Muitos países também subcontratam uma proporção significativa de seus serviços de cuidados prolongados a organizações voluntárias e privadas, onde os sindicatos não têm uma presença tão forte. 

A terceirização de serviços para prestadores privados e sem fins lucrativos, juntamente com o enfraquecimento do sindicalismo no setor público, implica em escolhas difíceis para os sindicatos em termos de alocação de recursos. Os sindicatos do setor público podem organizar-se nos setores público, privado e sem fins lucrativos. Os sindicatos deverão reconstruir e reforçar os seus locais de trabalho tradicionais no setor público, onde o pessoal trabalhador em cuidados prolongados ainda tem presença. Em sistemas de cuidados mercantilizados, a influência sindical é limitada porque os prestadores de cuidados dos setores com e sem fins lucrativos são, por tradição, em grande parte não sindicalizados. Haverá, por conseguinte, concorrência pelos recursos dentro dos sindicatos em todo o setor, mas também com outras áreas do domínio do setor público. 

Antissindicalismo em serviços terceirizados

Valores antissindicais resultam do receio de que atividades como greves e outras formas de ação possam perturbar os serviços e a missão, ou a geração de lucros no caso dos prestadores privados. No caso das empresas de cuidados prolongados do setor privado, tem havido pouco trabalho com os prestadores privados sindicalizados, porque são poucos os que reconhecem os sindicatos. No entanto, onde os sindicatos estão presentes, têm de enfrentar uma série de problemas. As margens de lucro de alguns prestadores podem ser pequenas, o que torna bastante difícil a negociação de salários. Em outras, onde o capital privado pode estar presente, a complexa engenharia financeira associada a essas formas de propriedade torna também difícil a negociação devido à falta de transparência no financiamento dessas empresas. 

As organizações sem fins lucrativos apresentam seus próprios problemas específicos. O apego a valores e missões particulares e os direitos de determinados grupos de clientes podem muitas vezes redundar em comprometimento de direitos de trabalhadores e trabalhadoras. Os sindicatos são percebidos como um obstáculo ao tipo de flexibilidade e às formas de sacrifício esperadas de pessoas trabalhadoras em entidades sem fins lucrativos na prestação de serviços. Em resposta à resistência dos sindicatos, alguns prestadores de serviços sem fins lucrativos são conhecidos por exibirem atitudes antissindicais semelhantes às dos piores empregadores com fins lucrativos. Esse fato levou a casos em que os direitos de negociação foram eliminados.  

Trabalhadoras e trabalhadores migrantes

O aumento do número de pessoas trabalhadoras migrantes no setor de cuidados é outra complicação para os sindicatos do setor. Essas pessoas trabalhadoras são algumas das mais vulneráveis no setor de cuidados de longa duração devido à exploração em torno de jornadas de trabalho e de outros termos empregatícios e condições de trabalho. E, no entanto, é difícil chegar até essas pessoas por muitas das razões acima referidas. Além disso, pessoas trabalhadoras migrantes recentes podem chegar ao local de trabalho com pouco conhecimento ou experiência limitada acerca de sindicatos. Em alguns casos, a sua experiência com sindicatos pode ser negativa, como aconteceu com migrantes da Europa do Leste, onde o coletivismo estava associado aos antigos regimes comunistas. A vulnerabilidade das pessoas trabalhadoras migrantes também as torna mais difíceis de organizar, porque podem relutar em serem vistas como "causadoras de problemas", além de poderem ter direitos limitados. 

Falta de poder de negociação

Mesmo quando os sindicatos estão presentes em prestadores com e sem fins lucrativos, o efeito da cadeia de abastecimento e da dependência de recursos limita as perspectivas de uma efetiva negociação coletiva. Em específico, os acordos de financiamento abaixo da inflação oferecidos pelos governos, como em nossos países selecionados da OCDE, reduzem as perspectivas de que a negociação coletiva dos salários nos prestadores de serviços terceirizados possa acompanhar as condições do setor público. Esta limitação da negociação coletiva deve-se a várias razões. Em primeiro lugar, ao contrário do que acontece no setor público, a negociação coletiva pode ser restrita à empresa e não está sujeita a acordos nacionais. Em segundo lugar, em nível da empresa, o Estado atua como "terceiro empregador", determinando o acordo de financiamento que delimitará os acordos salariais, sem ter qualquer envolvimento direto nas negociações. Em acordos de negociação descentralizados, os sindicatos não têm, portanto, o poder de responsabilizar ou negociar com o(s) órgão(s) estatal(is) que detém(êm) as chaves do cofre. Isso torna difícil para os sindicatos atribuírem a culpa por baixos aumentos salariais ao empregador imediato e mobilizarem uma ação coletiva contra este. Mesmo nos casos em que os sindicatos estão presentes, a combinação da dependência de recursos em um clima de austeridade significa que os sindicatos podem trabalhar em um contexto de "negociação de concessões" quase perpétuo e, consequentemente, ter dificuldade para ter um impacto no aumento dos salários do pessoal trabalhador, como tem sido o caso na Austrália em termos de negociação empresarial em cuidados prolongados. 

Individualização e personalização

A individualização e a personalização também têm implicações para a negociação coletiva e a organização do setor. Estudos anteriores reconhecem a forma como pessoas beneficiárias dos cuidados podem influenciar a natureza do trabalho e os processos de relações laborais nos serviços públicos em três níveis. O primeiro é a coconcepção, em que as pessoas usuárias do serviço apresentam suas necessidades e contribuem para o desenvolvimento de um serviço. O segundo é a coprodução, que permite a pessoas usuárias do serviços influenciar a prestação operacional dos mesmos. O terceiro e último, a cossupervisão permite a pessoas usuárias do serviço responsabilizar as pessoas incumbidas da prestação do serviço (Bellemare, 2000). O poder e a autoridade das pessoas usuárias dos serviços nesses esquemas individualizados, porém, não são completos, uma vez que muito depende da força e da influência relativas dos outros atores das relações laborais – trabalhadores e trabalhadoras, sindicatos e gestores(as) (Bellemare, 2000).

Implicações para a influência e a organização sindical nos cuidados de saúde prolongados

A existência e a representatividade das organizações de trabalhadores e trabalhadoras do setor dos cuidados, bem como a cobertura dos mecanismos de diálogo social, incluindo a negociação coletiva, também desempenham um papel importante na determinação do salário e das condições de trabalho de trabalhadores e trabalhadoras do setor dos cuidados (OIT, 2018). Lydia Hayes (2017) elenca oito razões pelas quais a negociação coletiva é necessária no setor de cuidados de longa duração. 

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E o que os sindicatos podem fazer? 

À luz das conclusões do relatório independente, inclusive de seus estudos de caso, recomendamos o seguinte enfoque de campanha: 

  • Campanha sobre o princípio de que o trabalho digno está na base dos cuidados de longa duração de alta qualidade. 

  • Adotar os seis princípios descritos neste Relatório como um caminho para uma campanha por trabalho digno e por cuidados de longa duração dignos e de qualidade. 

  • Fazer uma campanha para que os princípios de condições de trabalho dignas sejam incorporados na tomada de decisões dos organismos públicos responsáveis pela contratação de serviços de cuidados prolongados. 

  • Submeter, sempre que possível, todos os prestadores externos a alguma forma de negociação coletiva. A negociação coletiva em nível setorial é preferível, mas também é necessário prestar atenção à representação e à voz no local de trabalho. 

  • Avaliar as atuais estratégias de sindicalização no setor de cuidados de saúde prolongados a fim de identificar com precisão trabalhadores e trabalhadoras que possam ser objeto de sindicalização nos setores público, privado e voluntário.   

  • Defender relações adequadas entre o número de pessoas usuárias e o número de pessoas trabalhadoras em cuidados de saúde prolongados, à luz das lições da pandemia de Covid-19.  

  • Fazer campanha por uma maior transparência nas transações financeiras de empresas multinacionais para garantir que os orçamentos públicos sejam investidos adequadamente nos cuidados de saúde prolongados. 

  • Campanha por um salário digno que reconheça a subvalorização do trabalho remunerado de cuidados com base no gênero, a disparidade entre trabalhadores e trabalhadoras privados, públicos e voluntários, a erosão dos percursos profissionais e as classificações e relatividades salariais. 

  • Fazer campanha para que os custos totais dos cuidados sejam cobertos, de modo a que os prestadores de cuidados em domicílio sejam pagos pelo tempo de deslocamento entre pessoas usuárias. 

  • Melhorar outros benefícios não salariais, com especial atenção para o aumento das licenças remuneradas, os direitos de pensão e a segurança no emprego. 

  • Reorganizar o horário de trabalho do pessoal para garantir um horário de trabalho digno e acabar com o subemprego. 

  • Evitar conflitos trabalho-família pela resolução do problema de turnos fragmentados. 

  • Parar de utilizar formas de contrato exploradoras, como os contratos intermitentes, comuns no Reino Unido. 

  • Garantir voz/representação a trabalhadores e trabalhadoras quando da introdução de novas tecnologias. 

  • Campanha para melhorar a prestação de cuidados de saúde prolongados por meio do desenvolvimento e reforço dos atuais sistemas de saúde. Para países do Sul Global com pouca probabilidade de terem um sistema integrado de cuidados de saúde prolongados, isso significa garantir que os serviços de saúde possam oferecer serviços às pessoas mais idosas. 

  • Recolher dados exatos dos países do Sul Global sobre a mão de obra que presta cuidados formais e informais. 

  • Concentrar-se em garantir os direitos laborais de trabalhadores e trabalhadoras informais nos países do Sul Global, inclusive o pagamento de um salário decente em vez de ajudas de custo. 

  • Concentrar-se nos direitos de trabalhadores e trabalhadoras migrantes nos países de destino, bem como apoiar a criação e a manutenção de uma força de trabalho local no setor de cuidados. 


Para explorar a nossa investigação com mais pormenor, consulte o relatório completo aqui (apenas em inglês)